Lungué-Bungo,
última etapa da nossa comissão de serviço em Angola. O rio com a sua ponte, o
agrupamento de fuzileiros e o campo de futebol, na margem direita a sul da
ponte. A "Ilha do Hipopótamo" e aquilo a que chamamos praia, a norte
da ponte. Na direção de Gago Coutinho do
lado direito da estrada, no sentido Luso, Gago Coutinho, o nosso aquartelamento,
a seguir à casa de negócio e habitação do senhor Fonseca, comerciante e
agricultor, radicado em Angola, havia muitos anos, onde vivia com uma angolana.
A mulher e os filhos, tinham regressado a Portugal, a seguir ao início da
Guerra Colonial, para a cidade de Coimbra. O quimbo, em frente das nossas
instalações, do lado esquerdo da estrada.
Foto de Manuel Pimenta: à direita, em
primeiro plano a casa do Sr. Fonseca.
A entrada do
nosso aquartelamento situava-se, logo, a seguir. Em frente o Quimbo
Lisboa
ficava longe, 9669 Km, como podemos ver o furriel miliciano João Merca a
apontar para o pilar. Era longe, mas já estava perto o dia do regresso.
Pilar
da ponte com o furriel miliciano Merca a indicar a distância para Lisboa
Muitos
camaradas mergulhavam para a água do gradeamento superior da ponte, duma altura,
que deveria rondar, entre os 10 e os 15 metros. Aventura que não me seduziu,
talvez pelo perigo, talvez por medo, enfim não saltei. Outros camaradas
tentaram o ski, alguns com algum sucesso, mais uma vez fiquei pelo Sku, com
algumas quedas, antes de começar a skiar.
O furriel
Merca a treinar ski (ao que parece com sucesso)
A
praia (1º Reis e furriéis Zé Simões, Fernando Santos e João Merca)
O rio
e a Ilha ao fundo
A casa de comércio do senhor Fonseca (vendia tudo) era,
frequentemente, palco de muitos petiscos noturnos, já que os petiscos diurnos
tinham como cenário a Ilha. Na Ilha, acompanhavam-nos, nestas diversões, os
militares do agrupamento de fuzileiros, aliás eram eles que nos transportavam
nos botes. Estes petiscos eram sempre bem regados com "catembe",
"tricofiht", "banheira" e outras misturas, com tudo o que
havia para misturar.
No regresso, raras foram as vezes em que não tivemos
de descer o rio ao sabor da corrente. O homem do leme, depois da
confraternização, tinha alguma dificuldade em acertar com a passagem: as
hélices dos botes ao passarem no meio das pedras eram destruídas por estas, nem
as suplentes nos salvavam e também acabavam por se partir.
Petisco
no Fonseca
Petisco
na Ilha (pode ver-se a lata com a magnifica mistura)
Na
retaguarda do nosso aquartelamento, dentro do perímetro de segurança a cargo da
nossa companhia, estavam as instalações que serviam de residência aos trabalhadores
da TECNIL e seus familiares. A TECNIL era a empresa de engenharia contratada
pela JAEA - Junta Autónoma de Estradas de Angola, para efetuar a abertura da
picada, com vista à construção da futura estrada Luso - Gago Coutinho, asfaltada
após a nossa rendição.
Trabalhos
na estrada (TECNIL)
Em frente do nosso aquartelamento ficava o
"quimbo". Quando o sol se escondia na linha do horizonte e ainda
pairava no ar o cheiro à terra húmida, ao longe, ecoava o som dos tambores, anunciando
a presença de enfermos e curandeiros. Estes curandeiros, uma espécie de
espíritas, tentavam afugentar o mal que possuía os indígenas, debilitados pela doença: uma fogueira, um
bidon com água a ferver, ramos de palma, o toque do tambor acompanhado de
cânticos e exorcismo. Para afastar o mal, ia-se salpicando o paciente com a
água quente (muitas vezes a ferver), até este entrar em transe. Participei
algumas vezes neste ritual, acompanhado de outros camaradas, no interior do quimbo.
Raras eram as ocasiões em que no dia seguinte, não havia a
festa da despedida, o doente, na maioria dos casos, acabava por falecer e
voltava o som do tambor, os cânticos e nestas ocasiões o banquete. Segundo os
nativos, o banquete, era para comemorar não terem sido eles a partir.
O tambor e o batuque também se faziam ouvir noutras
comemorações indígenas, não haveria noite em que não tivéssemos este ritual
africano.
Tambores (batuque)
Fazíamos,
então, proteção à “JAEA”, na construção da estrada Luso, Gago Coutinho. Nesta
missão os militares que participavam na proteção tinham direito a um reforço
alimentar, composto por uma sandes (pão, chouriço ou queijo) e um copo de
vinho. Era entregue a um elemento do grupo de combate, escalonado para fazer
esse serviço, a totalidade dos pães e do chouriço ou queijo que depois cortava
e fazia as sandes no local.
Local
de apoio à proteção, onde era distribuído o reforço
Chegou a vez a um 1º cabo do 3º grupo de combate, a distribuição
do reforço alimentar. Foi abrindo pães, colocando o chouriço e enchendo o
púcaro de vinho, um a um, distribuindo pelos camaradas, a determinada altura já
não tinha mais ninguém na fila a quem distribuir e ainda sobravam 3 pães, chouriço
e vinho, pensou: "eh pá hoje
descuidaram-se e puseram sandes e vinho a mais", então começou a completar
os pães sobrantes com o chouriço e ia comendo e bebendo, até que terminou, já
muito bem fornecido. Nisto aparecem 3 camaradas que estavam na proteção e só
podiam vir depois da rendição, dirigiram-se ao nosso cabo: "dá aí as
nossas sandes!", - pergunta o cabo: "quais sandes?" - os
militares que estavam a contar com o reforço responderam: "as que temos
direito", - retorquiu o cabo:
"já as comi todas, não vieram durante a distribuição!", - o furriel
que estava de serviço, ao ouvir este diálogo, interrompeu-os e exclamou:
"Oh seu 'CABO GULOSO', agora, vais ficar uma semana sem comeres
sandes!".
A partir deste dia ficou conhecido como o "CABO
GULOSO" e ainda hoje nos almoços de confraternização é assim que é
identificado.
Cabo
Guloso em cima do para choque da viatura, ali mesmo ao centro
O Lungué-Bungo terá sido, depois de Luanda, o local onde
melhor nos sentimos e com muita "estória" para contar. É a nostalgia
desse tempo, a falar, onde a guerra, ficou um pouco para trás.
A história do "CABO GULOSO" foi-me contada pelo
ex-1º Cabo, Joaquim Pereira dos Santos. Obrigado Santos, pela narrativa!
Fotos de: M Pimenta, J Merca, H. de Jesus e J. Santos
F. Santos - Memórias de Angola
terça-feira, 22 de janeiro de 2018