terça-feira, 11 de dezembro de 2018

A caminhada até Cangumbe, Canage, Lucusse e Lungué-Bungo

(O assalto ao cofre da companhia)

Em finais de agosto ou princípio de setembro de 1970, iniciámos a marcha que nos levaria de Luanda até ao Canage, com passagem por Cangumbe e posteriormente até ao Lungué-Bungo, com alguns dias estacionados no Lucusse), localidades do distrito do Moxico, na Região Militar Leste. Esta viagem teve várias etapas no seu percurso: inicialmente em coluna motorizada; lembro-me duma paragem um pouco antes duma ponte, onde pernoitamos na primeira noite, seria no Dondo ou na Catumbela, mas não posso afirmar que tenha sido numa destas localidades. A memória desta caminhada está um pouco enevoada.

Foto do ex-furriel miliciano João Merca, tirada a 27 de dezembro de 1969,
 numa escolta de Luanda para Nova Lisboa, no dia seguinte ao nosso regresso do Dange

Antes de embarcarmos no comboio que nos levaria até à estação de Cangumbe, etapa seguinte, ainda pernoitamos na cidade de Nova Lisboa, atual Huambo. Em Cangumbe assentamos arrais e a partir daí participámos na operação "ESCOVAR", combatemos, patrulhámos, reconstruímos pontões, abrimos picadas, recolhemos populações e reorganizámos o quimbo do Caminhão.

Foto do ex-furriel miliciano Adelino Brandão: Cangumbe - Será um edifício administrativo

Foto enviada pelo Furriel Miliciano Adelino Brandão: comboio que nos levaria até Cangumbe

Foi nesta localidade, onde montamos o nosso acampamento, que em véspera de pagamento dos ordenados ao pessoal, se desenrolou a 1ª fase do testemunho que vamos relatar: 3 condutores da companhia, o Regalado, que seria o chefe do grupo, o Frade e o Baldas, resolveram assaltar o cofre que se encontrava na tenda da secretaria e subtrair todo o dinheiro que lá se encontrava, levando também algumas garrafas de Whisky.

Aldeia de Cangumbe

- Na versão do Baldas, em conversa recente, diz que não era isso que tinham programado, o que tinha sido pensado era um assalto à tenda do comandante do batalhão, como represália, por este, na noite anterior, se ter apoderado duma G3 que estava na tenda destes militares e que pertencia ao Frade, o que causou uma chamada de atenção do comando para a falta de segurança -. Ficou por aqui a advertência!

Ainda na versão do Baldas: - o Regalado terá dito que isso só iria trazer chatices e que o melhor seria assaltar o cofre da companhia. - Após concordarem com a ação a desenvolver, os 3 consumaram o assalto. Foram subtraídos cerca de 150 mil escudos (para se ter a noção do valor, podemos aferir pelo vencimento dum soldado em Angola, que era de cerca de 400 escudos por mês) e algumas garrafas de Whisky -.

Terei sido o primeiro, ou um dos primeiros, a saber do assalto porque na manhã do dia seguinte, como trabalhava na secretaria com o 1º sargento Raínho, a primeira coisa que ele me disse com ar de preocupação e em segredo foi que o cofre tinha sido assaltado e retirado de lá o dinheiro dos vencimentos do pessoal.

A versão comunicada para o atraso no pagamento dos ordenados foi: com a viagem para o Leste, ainda não tinha chegado o dinheiro, que teriam de aguardar mais alguns dias e quem não tivesse dinheiro, podia comprar na cantina a crédito. A situação do pagamento dos vencimentos foi resolvida com alguns empréstimos de outras companhias. Terá também sido feita a participação para as estruturas superiores.

Retomamos alguns dias depois, a bordo do comboio, a partir da estação de Cangumbe, a caminhada para a cidade do Luso, atual Luena; aqui chegámos ao fim da tarde e pernoitámos nesta cidade; começou nesta cidade, a aparecer os primeiros sinas de alguma intranquilidade: às tantas da noite, soou um tiroteio pelas ruas do Luso; era, nem mais nem menos, o Frade que depois de beber mais do que devia, não terá aguentado a pressão e ficou desorientado, expressando-se desta forma, disparando tiros para o ar, durante algum tempo. Conseguimos acalmá-lo e levá-lo para o local onde pernoitou.

Foto enviada pelo ex-furriel miliciano Adelino Brandão: Estação

Cidade do Luso - anos 70 (atual Luena)

No dia seguinte prosseguimos a viagem até o nosso destino, o Canage, onde construímos um acampamento junto ao rio do mesmo nome. Tínhamos como missão, a proteção próxima e afastada dos trabalhos de construção da futura estrada que ligaria, nos cerca de 400 Km, o Luso a Gago Coutinho.

Foto do ex-furriel miliciano J. Merca: acampamento do Canage

Foi a partir deste acampamento que teve início a fase final do testemunho, que agora recordamos: numa coluna com destino ao Luso, aconteceu um facto não habitual, cada viatura (berliet) levava dois condutores, seguiu nesta coluna também o furriel mecânico-auto, Zé Francisco. O Regalado, o Baldas e o Frade conduziram as viaturas, com outros 3 condutores a seu lado, a justificação para terem seguido estes condutores foi: que iríamos receber 3 viaturas novas naquela cidade. Na cidade do Luso, os suspeitos foram conduzidos pelo Furriel Zé Francisco até às instalações, que segundo a versão do Baldas seriam, da PIDE/DGS, onde estavam uns senhores à civil, que levaram-nos para uma sala onde foram interrogados, um de cada vez, e, ficaram à guarda da "Polícia Judiciária"?

Pensávamos, que a descoberta, teria sido feita através duma investigação do comandante de companhia, com os seus informantes, a desvendar toda esta teia que envolveu os militares que assaltaram o cofre. No entanto e ainda na versão do Baldas: - não terá sido bem assim (mas não deverá andar muito longe disso), diz ele que não dormia bem desde esse dia, e, numa noite de insónia, abeirou-se dum posto de viga, onde estava de serviço um amigo seu, desabafou com ele, narrando-lhe a sua versão que transcrevemos quando do assalto -. Ainda nas palavras do Baldas: - terá sido o Regalado a ficar com todo o dinheiro, ou quase todo, restando para ele e para o Frade as garrafas de bebida. Conta o Baldas: - que quando chegou ao Luso viu logo que estavam tramados e que a primeira pergunta feita pelo senhor à civil, no interrogatório, foi: - qual a marca de Whisky de que ele gostava! Pensou: "já descobriram tudo!"! -

O Regalado foi o que se aguentou melhor e ninguém desconfiava dele: provinha duma família abastada, recebia uma mesada do avô para complementar o vencimento de 1º cabo e era casado. É neste ponto que se pode perceber a sua participação: soou à esposa, que ele teria uma amante em Luanda e que gastaria o dinheiro da mesada com ela, então, junto do avô do marido, conseguiu que lhe fosse cortada a mesada. Como estava habituado a gastos maiores, foi endividando-se junto de amigos e mesmo de furriéis da companhia, que eram os que tinham mais disponibilidade. Deverá ter pensado que assim resolveria a situação. Depois da prisão a esposa e o avô deslocaram-se ao Luso e Lungué-Bungo, terão nesta ocasião liquidado o valor que tinha sido subtraído do cofre e pagaram algumas dívidas contraídas antes do assalto, o que terá atenuado a pena.

Ponte do Lungué-Bungo

No testemunho do Baldas: - foram julgados pelo tribunal militar e punidos com 15 meses prisão, inicialmente numa prisão militar no Luso, até o batalhão ter regressado a Portugal, depois foram entregues à Penitenciária de Luanda, onde cumpriram o resto da pena e foi colega de cela do Frade, refere ainda, que o Regalado cumpriu pena à parte, mas nunca mais o viu desde o julgamento.

Do Regalado, desde que saiu do Canage, nunca mais soube nada dele, fui informado, por um camarada, que falecera há algum tempo.

O Frade depois da libertação, terá emigrado para os Estados Unidos? Também nunca mais contactei com ele.

O Baldas é presença assídua nos almoços de confraternização da companhia, reorganizou a vida, vive algures no Algarve. Continuo a ser seu amigo e comunicamos muitas vezes.

Nota: Os nomes que estão neste testemunho são fictícios. 

Veja também a sátira baseada neste testemunho: Cronologia do assalto!

F. Santos - Memórias de Angola
10 de dezembro de 2018