quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Falar do Zé Xana é inevitável

 Homenagem a uma figura que nos marcou nos anos 50 e 60 do século XX.

Foto de Vítor Gomes - Zé Xana, na sua pose preferida, no jardim

Quando recordamos os nossos tempos de juventude, na Escola Industrial e Comercial de Silves, uma figura carismática, como o Zé Xana, vem sempre à nossa memória. Nunca a esquecemos: não por ter sido aluno, nem contínuo, muito menos como professor (apesar de algumas vezes até nos dar lições). Foi, no entanto, uma figura típica e incontornável da nossa escola (não faço ideia se alguma vez lá terá entrado).

Nos intervalos das aulas, estava sempre no jardim, em frente à porta principal, com a sua pose característica. Dali dominava tudo o que o rodeava. Quando por alguma razão não era o primeiro a chegar, vinha sempre em andar apressado, com um ombro descaído, apontando para o pulso, como que a justificar-se. Era como se tivesse ali um relógio (tinha, certamente, um relógio imaginário). Este gesto ele repetia sempre ao toque de saída, de entrada ou segundo toque. Ficava irritado, quando algum de nós não nos dirigíamos para as aulas.

Quando chegava junto dos rapazes, a primeira coisa que lhes dizia era: "amigo, dá um cigarrinho!", depois da primeira fumaça, quase sempre perguntava a quem lhe dava o cigarro "e a moça?" (a moça era a namorada do amigo). Quando voltávamos para as aulas, o Zé Xana recolhia todas as “beatas” dos fumadores, que não tinham acabado o cigarro, assim, ele sem ter dinheiro para comprar cigarros, era o maior fumador.

Ninguém podia ameaçar um amigo, ou uma das suas meninas (que eram todas as alunas da escola), mesmo em brincadeira, o Zé estava sempre na primeira linha, na defesa do ofendido. As vénias que fazia aos professores, com ar respeitoso, quando passavam. Tinha, sempre, uma frase simpática, que identificava a quem se dirigia. Se não gostava de alguém, o que era raro, virava as costas em ar de desprezo.

Muitas vezes comia um bocado das nossas sandes: de chouriço, de fiambre ou de atum com óleo, que lhe escorria pelas mãos. Estas sandes eram compradas, principalmente, pelos alunos que moravam fora da cidade de Silves, no quiosque do jardim (propriedade do Custoidinho, depois do Branquinho e finalmente do Florival). Nalgumas ocasiões, comia apenas metade da parte que lhe oferecíamos: dizia que a outra metade era para mãe. Também quando lhe dávamos dinheiro para comprar cigarros ou comida, guardava no bolso, e dizia: “o dinheiro é para a mãe”. O Zé tinha uma grande adoração pela mãe. Tal, como com os amigos, ou as suas meninas, ninguém a podia ameaçar ou ofender.

Simpático e delicado com as raparigas. O Zé gostava de lhes fazer companhia no regresso da escola. Acompanhava-as até à estação do comboio ou até à camioneta que era conduzida pelo Marinho. Era para as proteger. O Zé dizia que a camioneta era dele, até ficou conhecido, entre os alunos, como o “dono da camioneta do Marinho”. Por isso, era ele que organizava a entrada.

Constava que tinha uma “namorada”, a Madalena, também ela com deficiência. Esse assunto, era tabu para ele: sempre que lhe perguntávamos, onde estava a ”namorada”, ficava muito zangado e saía dali barafustando.

A partir de meados de 1968, com o recrutamento para o Serviço Militar Obrigatório, poucas vezes o encontrei e a partir dos anos 70, nunca mais o vi. Terá, segundo testemunhos, acabado os seus dias num lar, em Silves, onde foi bem tratado.

Muito mais haveria que falar sobre o Zé Xana. As homenagens são sempre feitas a gente "ilustre" que sempre esteve de "barriga cheia", muitas vezes de “mérito” duvidoso. Esta é uma homenagem a um homem simples, com a sua deficiência, mas de enorme bondade; figura simpática e respeitadora a quem ninguém lhe negava um sorriso, uma carícia, um cigarro, pão. Era tanto o que dava, tão pouco o que pedia. Sobre a amizade que ele nutria por alguém era mesmo sincera. O Zé Xana estará sempre, indelevelmente, ligado às nossas vidas.

F. Santos – Memórias de Juventude

26 de agosto de 2020

 

domingo, 16 de agosto de 2020

Luanda, início da comissão: a pesca na Ilha e o petisco …


Os pescadores na Ilha de Luanda em plena atividade
 
 Ainda não tínhamos pisado, bem, solo africano, já o lema que nos guiou ao longo desta odisseia, estava presente: aproveitar ao máximo o que esta terra nos oferecia, diversão e convívio, que se transformaria numa amizade duradoura, ao longo dos anos, e que ainda hoje se mantém. A guerra viria um pouco lá mais para a frente. Era um prelúdio, que nem dava para pensarmos o que nos aguardava. Durou pouco tempo. No entanto, tentámos viver esse tempo, com a energia que os nossos 20 anos, nos proporcionava: desde as noitadas nas cálidas noites de Luanda, até ao saborear da boa comida angolana em bons restaurantes. Parecia que tudo o que nos acontecia, era uma maravilha, nem os muitos serviços que tínhamos de assegurar, nos perturbavam. Acrescento, aqui, um parêntese: este grupo era privilegiado; tratava-se dum grupo de graduados.  Certamente os vários grupos de praças, também terão sabido desfrutar, à sua maneira, o que a bonita cidade de Luanda nos tinha para proporcionar.
 
 Foto de: Fernando Temudo - desfrutando os prazeres da praia 

Neste panorama “edílico”, seguimos desfrutando o melhor das nossas vidas, durante cerca de três semanas. As idas à praia da Ilha de Luanda eram um dos nossos passatempos favoritos. A praia da Ilha era mais do que podíamos ter imaginado, no entanto, faltava um pouco de atividade mais intensa. Encontrámo-la na pesca.

Juntou-se um grupo, mais ou menos, com vocação para esta atividade: peixe neste mar, não faltava. Havia que encontrar as ferramentas, necessárias, para materializar esta ideia: adquirimos um rolo de sedela (para quem não sabe do que se trata, aqui fica o significado: “linha resistente e com pouca visibilidade dentro de água a que se ata o anzol"); anzóis; umas pedrinhas que faziam de chumbada; uns pauzinhos para a ponta da sedela que se punha entre os dedos para ajudar a puxar a linha e, claro, um balde para transportar o peixe. Estava constituída a frota de pesca… À entrada a ilha encontravam-se uns miúdos que nos vendiam o engodo (casulo).

Numa destas pescarias, não me recordo se terá sido a primeira, provavelmente sim, tivemos de parar de pescar, porque o balde já estava cheio. Nunca tinha visto uma coisa assim: cada sedela tinha uns 5 anzóis, era só atirar e puxar, vinham sempre mais de três peixes em cada vez que se puxava, nem era preciso sentir o peixe picar. Eram peixinhos pequenos e achatados.

Finda a pescaria, regressamos ao Grafanil. Tínhamos de providenciar a confeção e consumo de todo este peixe. Chegámos à conclusão que a melhor solução seria fritá-lo e fazer um molho de escabeche. Precisávamos de duas frigideiras: uma para fritar o peixe e outra para fazer o molho. Eram necessários, ainda, alguns condimentos: óleo, sal e farinha para fritar o peixe; cebolas, azeite e vinagre para fazer o molho. Isto não constituiu um problema de maior, porque um dos elementos do grupo era vagomestre. Faltava a bebida: aí desafiámos mais alguns companheiros, dispostos a provar o petisco. Foram eles que providenciaram umas grades de cervejas fresquinhas. Foi farra pela noite dentro, com o pessoal sempre muito alegre.

A maioria destes militares eram furriéis, bem secundados pelo 1º sargento, da Companhia de Caçadores 2505, do Batalhão de Caçadores 2872, que serviram em Angola de maio de 1969 a junho de 1971.

A menos de um mês de chegarem a Luanda tiveram de dar por terminada a atividade de pesca na Ilha (a pesca continuou noutras paragens, mas com outras artes), já estavam nos Dembos, norte de Angola, com algumas amarguras, bastante dolorosas.
 
 Foto de: Zé Simões - Operação no Dange

F. Santos – Memórias de Angola

16 de agosto de 2020