sábado, 18 de julho de 2020

A EIC de Silves e o futebol na Cerca da Feira: algumas regras e outras curiosidades

Foto de Joaquim Reis: Cerca da Feira -Silves
Nos anos 60, do século passado, estudávamos na Escola Industrial e Comercial de Silves. Para quem viveu nesta época em Silves ou no Barlavento Algarvio, sabe que esta cidade, para além de ser uma cidade operária, tinha uma escola que congregava alunos de muitas origens geográficas.
A “nossa escola” era frequentada por alunos residentes na cidade das classes média baixa e média alta; alunos oriundos de outras localidades e freguesias do concelho; alunos dos concelhos do Barlavento Algarvio, desde Albufeira a Sagres e alguns alunos oriundos de outras localidades fora desta região, nomeadamente, do Baixo Alentejo. Frequentavam, também, a escola alunos provindos das classes mais abastadas que não conseguiam entrar para os Liceus Nacionais ou porque escolheram a “melhor escola do mundo”, para estudar.
O convívio entre os géneros masculino e feminino não era autorizado por quem mandava na instituição (não estamos a falar da direção!), daí não haver brincadeiras mistas, nem namoricos às claras. O jardim mesmo em frente à escola, apenas servia para passarmos os intervalos entre aulas (não quer dizer que os namoricos não tenham acontecido, mas sempre às escondidas, longe dos olhares dos algozes ou em flirts à distância).

EIC de Silves - Foto de 2016

“A nossa escola de futebol”
Nestas circunstâncias, os rapazes tinham de procurar outras alternativas:
  • frequentavam a casa da mocidade portuguesa ou a sede do sindicado dos corticeiros, duas instituições completamente antagónicas, que se situavam nos primeiros andares, uma em frente à outra, mas onde em qualquer uma delas podíamos desenvolver atividades lúdicas: jogar pingue-pongue, damas, xadrez, bilhar, batalha naval, matraquilhos ou simplesmente ler os jornais desportivos;
  • jogavam futebol: esta alternativa era a mais fácil e mais apetecida. A Cerca da Feira, adotada como o nosso “estádio de eleição”, situava-se ao lado do jardim, a umas dezenas de metros da escola. Aí os jogos prolongavam-se até à noite, com as várias equipas a revezarem-se ao longo do dia, “a nossa escola de futebol” 
 Foto da Net: Futebol de rua
Estavam, assim, reunidas as condições para a ocupação dos tempos livres, nos intervalos mais longos entre aulas. Por vezes prolongavam-se para além do tempo de entrada na aula seguinte, em consequência, averbávamos mais algumas faltas, que nos causavam alguma dificuldade em gerir e justificar.
Vamos, então, passar à fase mais aliciante deste testemunho: como começava um jogo?
   1 - Inevitavelmente tinha de haver uma bola; 
   2 - Construir as balizas (duas pedras, em cada lado do campo ou as mochilas escolares, ficavam
         operacionais  para o jogo começar); 
   3 - Formar as equipas (as várias formas de constituição):
  • podiam ser constituídas por jogadores das várias localidades que frequentavam a escola (neste caso, o mais comum, eram formações de alunos de Silves vs. Portimão), cada localidade usava o seu método de escolha;
  • o dono da bola escolhia a sua equipa e os elementos sobrantes, formavam outra equipa (era uma forma pouco democrática de escolha, mas se queríamos jogar, tínhamos de entrar no jogo de quem tinha o “poder” de decidir);
  • os dois jogadores considerados os “melhores” iam escolhendo alternadamente até as equipas ficarem completas, ou em alternativa, dois guarda redes (normalmente ofereciam-se dois jogadores que pensavam que nunca seriam escolhidos). Este método de escolha era o mais justo: os dois jogadores que iam escolher as equipas, ficavam a alguma distância um do outro e iam medindo pé à frente do pé e quem chegasse em cima do pé do adversário, era o primeiro a escolher. Quando o número de jogadores não era par, então o que sobrava, por não ter sido escolhido (ninguém queria ocupar esta posição), ficava a aguardar até que algum desistisse ou um dos guarda-redes desse um “frango”, entrava imediatamente, neste último caso, para a baliza. Podia também acontecer que chegasse alguém e ainda fosse possível admitir mais jogadores, então, entravam os dois, pela mesma ordem de escolha. As equipas não tinham número certo de jogadores: podiam ser de 5, 6, 7, no máximo 11, dependia das dimensões do campo. As linhas eram imaginárias.

    O dono da Bola
     
    Na ausência de equipamentos, os jogadores duma equipa, podiam tirar a camisola e ficar em tronco nu (o que era raro, apenas no início do verão isso acontecia, porque o frio não aconselhava e até muitas vezes ficavam com as camisolas de lã, que iam tirando à medida que o jogo avançava); era normalmente através do conhecimento das caras que se encontrava o jogador da nossa equipa. 

    Começado o jogo, como não precisávamos de árbitros, tudo tinha de ser decidido pelos jogadores por “consenso”: faltas, incluindo grandes penalidades; bolas nos postes e na trave, que não havia; bolas por cima da trave; ao lado da baliza ou golo. Aqui o princípio de quem decidia, era o mesmo que tinha servido para a escolha das equipas: o dono da bola depois de conferenciar com os jogadores “capitães de equipa” em cada formação; os melhores jogadores (entenda-se, os mais fortes); a equipa que estava a perder até podia ser beneficiada, mas em contrapartida na “penalização duvidosa seguinte”, o benefício seria para a outra equipa. Não me lembro de grandes conflitos e nunca foi necessário recorrer ao “vídeo-árbitro”. O nosso objetivo era jogar. Claro os resultados também contavam, muitas vezes iam até aos (40-40), mas no dia seguinte já ninguém se lembrava do resultado e começava outro jogo, com os mesmos ou com outros jogadores. Os que tinham sido no dia anterior adversários, no dia seguinte, podiam ser companheiros de equipa.

    O jogo acabava: ao pôr do sol; por falta de jogadores suficientes para as equipas jogarem ou por ter chegado o “árbitro” (pai do dono da bola), que dava o jogo por concluído, por vezes com alguma penalização.

    Haveria outras regras para estes jogos, mas estas terão sido as regras mais utilizadas e que a memória conseguiu reter.

    Saíram daqui muitos jogadores que alimentaram os juniores do Silves e do Portimonense. Outros chegaram mais alto, enquanto outros a carreira ficou por aqui.

    As raparigas teriam, certamente, outras brincadeiras com as suas próprias normas.

    F. Santos – Memórias de Juventude
    18 de julho de 2020