quarta-feira, 29 de agosto de 2018

A luta pelo controlo do recreio... ou como fui parar à "enfermaria".

Quando entrei para a escola primária, era tudo novo para mim, a sala de aulas, o recreio, os colegas e as brincadeiras. Nos primeiros dias observava tudo o que se passava ao meu redor e verifiquei que as meninas não brincavam com os meninos das classes mais adiantadas, por sua vez os meninos mais novos nem sempre eram admitidos nas brincadeiras dos maiores e então restava-lhes brincar com os da sua idade ou com as meninas, quando estas os admitiam. Era esta a ordem estabelecida.

Mas, então, quem estabelecia esta ordem? Quem comandava tudo isto, era quem tinha o controlo do recreio (o mais velho, o mais forte...), era ele que decidia quem brincava, o que se brincava e com quem. Nem sempre esta autoridade se fazia sentir e as brincadeiras desenvolviam-se naturalmente.

A luta pelo controlo do recreio

Nestes primeiros tempos de escola, o controlo do recreio ainda não tinha sido conquistado, havia dois colegas que lutavam por esse controlo, o Joaquim Sequeira Martins, que morava para nascente da área de Torre e Cercas e o Manuel Felícia que morava nos Queimados. A luta era tremenda, nos intervalos das aulas não se fazia sentir muito, mas no final do dia quando as aulas terminavam, quase sempre havia luta, algumas vezes, corpo a corpo, rolando pelo chão: numa ocasião, os dois foram rolando até uma rima de estevas que eram utilizadas para aquecer o forno da padaria; nesse lugar estava presa uma mula ou um macho; a certa altura ficaram por debaixo da barriga do animal que ia mexendo as pernas para não os pisar, até arrepiava; dessa vez acabou bem; noutras ocasiões desencadeava-se uma guerra de pedras entre os dois. Raras eram as vezes em que no dia seguinte não eram contemplados com o sabor da régua da professora.

Foi nesta segunda vertente da luta que aconteceu a minha "estória": depois de terminadas as aulas, desencadeou-se a guerra de pedras; o Joaquim Sequeira ia recuando e já estava no caminho que dava para o regresso a casa; o Manuel Felícia ia avançando; os assistentes, onde eu me incluía, ficaram na retaguarda, junto a uma parede que existia naquele lugar; eu ao passar junto a essa parede, por de trás do Manel, fui atingido no sobrolho, com uma pedrada atirada pelo Joaquim.

Fiquei a sangrar, rapidamente o sangue cobriu-me o rosto, passou-me para as mãos e para a roupa, na tentativa de o limpar e chorava ao mesmo tempo. Não me recordo quem me conduziu à "enfermaria" (casa da professora), mas quando lá cheguei ela perguntou-me: "Fernando! Quem te fez isso?"; eu chorava e entre soluços respondi: "na sei professora". Eu sabia quem tinha sido, mas se por um lado não gostava de denunciar o colega que morava para a minha zona e também tinha medo das represálias, por outro lado não podia dizer que era o Manel, porque não era verdade e também não queria falar sobre esta luta pelo "poder". Entretanto, alguém terá contado à professora o que se passou nessa tarde, porque no dia seguinte a régua "trabalhou" bastante!!! Esta luta só terminou quando o Joaquim Sequeira Martins terminou a 4ª classe.

Depois do curativo, feito pela própria professora (hoje resta, apenas, uma pequena marca, ainda bem visível, no sobrolho esquerdo), não brinquei pelo caminho, nem segui os percursos normais. A professora mandou chamar o meu pai, que trabalhava ali numa horta perto, que me veio buscar. Fui com ele para a horta e regressei a casa no fim do dia, já noite.

F. Santos - Memórias de infância
13 de agosto de 2018

quarta-feira, 22 de agosto de 2018

Consequências de brincar e jogar à bola nos Queimados

Não acreditava em bruxas, mas que as havia, havia...

Depois das 3 horas da tarde, terminadas as aulas na escola primária da Fonte Figueira, a partir daí era só brincadeira até ao sol posto: os caminhos eram muitos em direção a casa e por eles íamos fazendo os nossos jogos, brincadeiras e traquinices, durante o trajeto, quando a noite chegava já estávamos, na maioria das vezes, em casa ou muito próximo dela. No entanto nem sempre o recreio "pós laboral" seguia essa direção, algumas vezes era mesmo em sentido contrário e lá estava eu a caminho dos Queimados, para uma brincadeira diferente, que quase sempre, era jogar futebol com os amigos daquelas bandas, principalmente, com os Felícias, nas traseiras da casa deles (hoje restaurante Casinhas).

 
Largo nas traseiras da casa dos Felícias, hoje,  frente ao restaurante Casinhas
(na altura era de terra batida e por vezes com muita lama)

Aconteceu, assim, muitas vezes, durante os vários anos letivos que frequentei a escola primária da Fonte Figueira. Um dia houve, e foi o primeiro, em que o jogo devia estar extraordinariamente bom, que quando me apercebi já o sol se tinha posto; aqui acordei, peguei na balsa, segui por aquela estrada, subida acima, até um pouco antes onde moravam os "Correias"; durante este percurso, o medo não foi muito grande, porque fiz todo o caminho a correr e ainda se via alguma coisa, ao lusco-fusco, do início da noite; a partir daí, desço em direção às casas dos "Sequeira Martins, da Isilda e do Gregorinho"; o escuro era cerrado, não se via nada; no "carreiro" por onde seguia, dum lado alfarrobeiras, do outro o valado, a minha mente só vislumbrava sombras imaginárias. Chegado aqui comecei a lembrar-me das "estórias" contadas pela minha avó, dos bailes e festas de bruxas e lobisomens, nos espojeiros, entroncamentos e cruzamentos, - nestes eventos, os lobisomens eram os mais sacrificados, porque eram transformados em burros e tinham de carregar as bruxas até ao local da "festa", mesmo quando entravam na dança, tinham de carregá-las no dorso -; quando passava por uma alfarrobeira, encolhia-me junto ao valado e ao passar dava uma corridinha para me afastar, nem olhava para trás; ao mesmo tempo prometia a mim mesmo, muito convictamente, em pensamento: "nunca mais fico a jogar à bola até tão tarde!". Vencido este obstáculo ainda tinha de subir a encosta até à casa do meu "herói", o meu tio Manuel Anselmo; mas antes, mais uma provação se aproximava, passar pelas casas onde morava a família Santos; logo na primeira casa havia um cão, com quem me dei sempre mal; ultrapassava esse obstáculo contornando a "cerca", para evitar o animal "feroz" e num "pulo" estava na casa do meu tio Manel.

As "estórias" que a minha avó me contava, nada têm a ver com as "estórias" de ficção, com bruxas, vampiros e lobisomens, que hoje mais ou menos, todos nós conhecemos. Eram sim, relatos imaginários, sobre pessoas reais, que tinham aquela fama e todos conheciam e temiam, quando nos cruzávamos com elas, durante o dia, fazíamos cruzes nas costas, depois de passarem por nós, para afastarmos o feitiço. Eu não levava muito a sério essas "estórias, mas gostava de ouvi-las: à noite com o escuro e sozinho pelos "corgos", a conversa mudava de figura...

Foto do site Boca do Inferno: Lobisomem
(felizmente a minha avó nunca me tinha contado "estórias" deste personagem comendo criancinhas)

Um carreiro com alfarrobeiras, próximo do local por onde passava (aqui já sem o valado)

A casa do meu tio Manuel Anselmo em ruínas

Alívio! Mas atenção, a odisseia ainda não tinha terminado: chegar a casa, aquelas horas, não era bom sinal para mim, sempre alguma coisa me aguardava e não seria nada bom, isso, eu posso garantir; mesmo assim, já estava muito mais leve; o meu tio sempre encobria os meus desmandos e estava sempre disposto a me defender; eu comecei a queixar-me: "como é que vou para casa a estas horas e que desculpa vou dar ao meu pai?"; ele tranquiliza-me logo: "deixa lá! Eu levo-te a casa e digo ao teu pai que estiveste até estas horas comigo", a minha tia Inácia não estava muito de acordo, mas não se metia demais na conversa. No caminho para casa, saltámos mais uns valados, eu, o meu tio, o meu primo e a minha tia, alumiados por uma lanterna a petróleo transportada pelo "timoneiro" desta aventura final, o meu tio. Cheguei a casa, são e salvo, conforme o previsto. Nesse dia, os meus tios passaram ali algum tempo à lareira, onde muitas vezes se reuniam, enquanto eu e o meu primo brincávamos lá fora. Os trabalhos de casa podiam esperar até à hora em que eu sentado numa pedra, em frente à padaria, os fazia na manhã seguinte, em pouco mais de 15 minutos.

Se cumpri a promessa de nunca mais voltar tão tarde? Durante alguns dias sim, mas voltava novamente ao mesmo, nem sempre com os mesmos resultados, porque felizmente, também, havia noites de luar.

Noite de luar no campo

F. Santos - Memórias de infância
21 de agosto de 2018