sábado, 25 de março de 2023

Princesa adormecida por um belo príncipe

 


Todos os passados, como todos os paraísos, são impossíveis de recuperar. A não ser que façamos como aquelas personagens de uma célebre história dos irmãos Grimm: deixar pedrinhas brancas no nosso caminho, para, no regresso, não nos perdermos de nós próprios, nem do nosso passado, ainda que este seja sempre reinventado. Mas não basta ter recordações. É preciso saber esquecê-las e esperar que elas regressem.

Por vezes, num momento raro, uma dessas recordações, ergue-se no meio de outras pedrinhas que ficaram para trás. Hoje, muito especialmente, recordo o dia em que, no meio da rua, te dirigiste a mim e me disseste de roldão: “amanhã vou embarcar”. A tua frase deixou-me perplexa, a pensar nas razões que te levariam a ter tal impulso, tu que, até àquele momento, nunca me tinhas dito absolutamente nada. O que queria aquilo dizer? Seria um início de conversa? Esperei um momento. Ficaste em silêncio. O caráter de novidade da situação, deixou-me também sem palavras. Finalmente disseste: Angola. Vou para Angola. Angola? A interrogação não se fez esperar, mas não pretendia ser ardilosa — era fundamentalmente para ganhar tempo. As tuas palavras, parecendo retas, eram curvas, pois pareciam esconder mais do que mostravam e daí sentir uma certa dificuldade em alcançar o seu verdadeiro sentido.   

É que na minha idade ainda acreditava no despertar da princesa adormecida por um belo príncipe que um dia iria aparecer. A questão era saber como iria captar esse aparecimento.

 

25 de março de 2023

Leonor Santos