quarta-feira, 30 de setembro de 2020

O padeiro que ficou chamuscado…

João Martins (padeiro) ao centro, com o Mateus (Macary) à esquerda e o 1º cabo Domingos Ferreira à direita

O João dos Reis Martins era um soldado atirador do 1º grupo de combate da Companhia de Caçadores 2505 do Batalhão de Caçadores 2872. Natural de Montemor-o-Velho (não confundir com os alentejanos de Montemor-o-Novo), vila portuguesa do distrito de Coimbra, situada na província da Beira Litoral, distrito de Coimbra. O Martins alternava com o Salvador de Almeida Mondim (este camarada da terra do “carrapau” - Setúbal), na arte de fabricar o pão para o pessoal da companhia, livrando-se assim de algumas missões mais complicadas.

A nossa companhia, sempre acampou no meio da mata, em tendas de campanha (exceção a um curto período de permanência no Grafanil, em Luanda), para fabricar o tão apetecido pão utilizávamos um forno elétrico da marca “REKENA”.

Na última etapa da nossa comissão de serviço, no Lungué-Bungo, era o Martins quem assegurava o fabrico do imprescindível pão que acompanhava religiosamente todas as refeições. Este nosso padeiro era oriundo duma aldeia, onde os fornos comunitários, essencialmente, feitos de barro, todos os habitantes fabricavam pão.

Então o nosso padeiro, no Lungué-Bungo, vinha insistindo que devíamos construir um desses fornos: havia barro, havia água, havia lenha. Isto era o que ele vinha dizendo. Até que um dia, abordou-me diretamente e disse-me: “meu furriel, vamos fazer um forno de barro!”, e prosseguiu: “o meu furriel vai ver que nunca comeu um pão tão bom”. Depois de alguma discussão concordei com ele e disse-lhe: “então vamos construir o forno”.

O João Martins tinha sempre boas relações com os companheiros do pelotão e não só, arregimentou-os para nas horas vagas, participarem na construção do forno. Ao fim de alguns dias, o forno já estava construído, pronto para começar a produzir o pão. Até ficou bonito.

Forno de barro

Havia, então, de experimentar o resultado da obra, sendo, que sempre tínhamos a alternativa de ligar o forno elétrico. Depois de amassada e pôr a fermentar a massa, tínhamos de aquecer o forno: lenha, alguns pastos e os indispensáveis fósforos. O nosso padeiro, começou por acender os fósforos para pegar fogo ao pasto para começar a arder a lenha, mas nada. O fogo apagava-se logo. Então ele diz: “vou ali aos mecânicos para lhes pedir uma lata de combustível e atear o fogo”. Dito e feito: abalou e regressou com uma lata de combustível (não sei se seria de gasolina ou gasóleo). Ato contínuo atirou todo o combustível sobre a lenha e ficou tudo pronto para atear o fogo. Ele bem se afastou um pouco da porta do forno (nós ainda mais afastados), atirou o fósforo a arder para dentro do forno. Grande confusão, sai do interior do forno, uma labareda e fumo que apanhou a cara e os braços do padeiro, ficando completamente negro, só se viam os olhos. Pensei “estou desgraçado, autorizei esta “merda” e agora fico com o padeiro todo queimado”. Rapidamente conduziu-o até à tenda da enfermaria, sem saber no que aquilo resultaria. Chegados à tenda, disse para o furriel enfermeiro: “Eh pá! Temos de evacuar este gajo para o hospital do Luso, está todo queimado”; o furriel enfermeiro observou-o, olhando para a cara dele atentamente e fez logo ali o diagnóstico: “o gajo só está chamuscado, só tem de lavar a cara e fica como novo”. E assim foi, não passou dum susto!

F. Santos – Memórias de Angola

30 de setembro de 2020

 

domingo, 6 de setembro de 2020

As visitas de estudo na EIC de Silves foram um mundo à parte

O que aprendi nas visitas de Estudo

 Última visita de estudo: Piquenique na Horta de Mata Mouros

Introdução

Entrei para a Escola Industrial e comercial de Silves no outono de 1959. Tudo era novo para mim e para os meus colegas caloiros. Era todo um mundo diferente. Lembro-me que no 1º dia de aulas, a primeira aula era de “Trabalhos Manuais”. A minha turma estacionou junto às oficinas. Tocaram várias campainhas, intercaladas por alguns minutos, e nós ali à espera um pouco aparvalhados, nisto chega um calmeirão que não me recordo quem (podia ter sido o Camilo de Lagoa ou o Raposo do Poço Barreto ou outro qualquer aluno dos anos mais avançados, talvez um finalista…): barafustava connosco com ar autoritário: “venham para o segundo toque” (o que ele queria dizer era “saiam daí que o professor faltou…”, ficámos ainda mais atrapalhados do que já estávamos… mas saímos mesmo, sem saber o que fazer, mas quem mandava era a voz da autoridade dos mais velhos. Tudo isto, tal como a ordem unida da Mocidade Portuguesa, na instrução para-militar, que decorria atrás das oficinas, também era novo, mas rapidamente alguém nos informou que aquilo não contava para nada e a partir da 2ª semana já não havia: marcar passo, sentido, direita ou esquerda a volver, olhar em frente, olhar à direita, olhar à esquerda (não sei se seria proibido olhar à esquerda), nem outros movimentos, que mais tarde tivemos de aprender no cumprimento do Serviço Militar Obrigatório.

A introdução já vai longa, mas vamos falar do que nos trouxe aqui, as visitas de estudo.

A minha tendência para o desenho era nula

A primeira visita que me lembro, deverá ter acontecido na primavera de 1960, no ano letivo de 1959/1960, numa aula de desenho. Digo que terá acontecido na primavera, porque os campos estavam verdejantes e a temperatura amena, mas com necessidade de alguns agasalhos. Nesta visita era-nos proposto fazer um desenho onde nesses campos verdejantes estivesse uma vaca a pastar. Aqui aprendi que a minha tendência para o desenho era nula, pois o prado, vá que não vá, ficou um borrão verde, mas não fugia muito ao que tinha visto, a vaca, saiu um cão pequeno com uns grandes chifres… penso que não terei feito mais nenhuma visita durante a frequência do ciclo preparatório ou se fiz não me marcou de todo.

O professor Figueiras gostava muito de registar as visitas de estudo em fotos

Mais tarde, penso que no 2º ano do curso geral de comércio, ano letivo de 1962/1963 com o professor Figueiras, professor de inglês, fiz uma visita de estudo: esta marcou-me, especialmente, porque teve passagens pelo Monte Branco onde eu residia e pela Ponte do Caniné, por onde passavam muitas das minhas brincadeiras. Nesta visita de estudo, não aprendi inglês, mas aprendi que o professor Figueiras gostava muito de registar para a posteridade estes momentos.

Ficam aqui alguns desses momentos (como podem ver nas fotos estávamos todos lavadinhos e penteadinhos, sem dispensar a gravata, só faltava um casaquinho, mas pronto a visita era no campo, não dava muito jeito).


 Momento 1: No Monte Branco com o moinho do Caniné ao Fundo


 Momento 2: O pessoal a pousar para a objetiva na Ribeira do Enxerim

 

 Momento 3: O pessoal a fazer equilíbrio em cima da ponte do Caniné

Lembro-me ainda de mais duas visitas de estudo, todas elas nas aulas de história, uma no 2º ano e a outras já no ano de finalista.

Professor com falta de ar não devia fazer visitas de estudo…

Na visita do 2º ano, apetrechámo-nos com pás e picaretas, íamos desbravar as terras para o lado do Poço Barreto, na esperança de encontramos achados arqueológicos das nossas origens (não me lembro se seriam romanas ou árabes). Fizemos todo o caminho a pé, quando chegámos a uma encosta bravia, já próxima da passagem de nível, esboçamos alguns gestos para desbravar o solo, que estava bastante duro. O calor era muito e já estávamos cansados. Aí aprendi que o professor, por ser menos jovem do que nós, ainda estava mais cansado e ficou com falta de ar, numa grande aflição. O que lhe valeu foi a bomba de ar, sua fiel companheira e a boleia que apanhou à beira da estrada num carro, que naquele tempo era rara. Acabou a visita de estudo naquele momento: O pior é que tivemos de fazer o percurso de regresso com as ferramentas às costas e tivemos de as devolver. Aqui aprendi que o professor não sabia muito bem em que alhada se estava a meter… aquela falta de ar acontecia muitas vezes nas aulas quando se irritava (o que mais o chateava era falarem mal do Sporting…).

Os finalistas tinham outros privilégios que eram vedados aos outros alunos…

Por fim já no ano letivo de 1964/965, ano de finalista, numa turma mista, juntaram-se os dois professores com os quais mais visitas de estudo terei feito. Esta visita, provavelmente, teria como objetivo, descobrir onde os mouros saíam, do outro lado do rio, onde eram “exterminados”. Pois a visita foi na Horta de Mata Mouros. Nada mais enganador. A visita de estudo destinava-se a fazer um piquenique em franco convívio (meninas, meninos e professores). Só me lembro que da ementa constava leitão assado e uns garrafões de vinho. Eu apenas comi umas laranjas apanhadas na horta e bebi uns copos de vinho, demasiados, porque fiquei muito alegre. Aqui aprendi que o convívio entre géneros poderia ser aceite em determinadas condições, que não gostava de leitão e que também se podia apanhar uma bebedeira numa visita de estudo (foto de abertura).

As visitas de estudo, eram sempre coisas boas, que todos os alunos gostavam. Era um dia onde dávamos descanso às aulas e isso era o melhor que nos podia acontecer.

Fotos: Vitória e Aníbal Vieira (estou em todas)

F. Santos – Memórias de Juventude

6 de setembro de 2020