domingo, 13 de dezembro de 2020

As iguarias que faziam as nossas delícias

(Artimanhas para provar em primeiro lugar)

 

Nas minhas memórias de infância já publiquei “A matança do porco" e as várias fases desde a engorda”, neste texto vou relembrar as iguarias depois da morte do porco:

Logo a seguir à “matança”, seguia-se aquilo a moleja: cozinhávamos os "miúdos" (coração, fígado (cachola), rins, bofe e sangue). Nesta fase, ainda ligada à festa da morte do porco, participavam os vizinhos e durava todo o fim de semana. Descrevi nessa memória: “… não podemos esquecer os garrafões de vinho tinto, que nós só víamos, cantavam o fado à desgarrada pelos participantes da festa, depois de bem "comidos" e "bebidos", até de madrugada”.

Depois desta fase, seguia-se o tratamento das carnes: o picado das barrigas e as partes mais magras, temperadas com especiarias que ficavam algum tempo para tomar o gosto; preparar as tripas e enchê-las com o picado, depois de as escaldar; aqui tínhamos os chouriços prontos a serem pendurados numa vara ao fumeiro. Quando se escaldavam os chouriços, ficava à superfície uma gordura avermelhada, que íamos tirando com uma colher que depois de coalhada, era a manteiga de chouriço; salgar o toucinho, que servia para ser utilizado nos jantares de grão ou de feijão. Estes jantares por vezes também levavam um pouco de entrecosto; fritar as banhas para obter a “manteiga de porco” e consequentemente os tão apreciados torresmos. Torresmos que eu só gostava logo a seguir, quando estavam estaladiços; escaldar os lombinhos e introduzi-los em latas de cinco ou dez litros, com a banha a cobri-los (não faço ideia onde eram obtidas essas latas, mas o mais certo eram ser adquiridas numa mercearia, sem custos, porque seriam embalagens para deitar fora); tratar os presuntos, depois de uma “quarentena” na salga, com uma mistura de alho esmagado, azeite e pimentão doce, para barrar a carne.

Presuntos pendurados no teto

Chouriços no fumeiro


A minha memória leva-me até Torre e Cercas, onde assisti a todas estas fases. Depois deste tratamento seguia-se o período de conserva destes produtos, mas eu, com os meus 6 a 11 anos, não tinha paciência para esperar todo esse tempo de conserva. Então fui desenvolvendo artimanhas para ser sempre o primeiro a provar:

  • Os lombinhos de porco ficavam camuflados no interior da banha (manteiga de porco”, passado algum tempo ia com um canivete até chegar ao lombinho e tirava umas “falripas” que eram uma delícia com o pão saído do forno que o meu pai tinha construído ao lado da casa. Para disfarçar esta ousadia cobria o resto com banha, tirava, ainda, um pouco de banha, aquecia numa frigideira ao lume para derreter e cobria a superfície da lata para não se notar. Claro que aquilo ia descendo e, a certa altura, a minha mãe dava pelo desfalque; 
  •  Ainda na fase da conserva do picado para os chouriços, ia “roubando” uns bocadinhos que fritava com a banha, era uma delícia;
  • Os presuntos e os chouriços eram pendurados no teto duma cozinha que eu aqui já descrevi em:  A cozinha da minha avó, os serões e outras histórias”. Os presuntos, antes de serem “encetados”, eu passava por ali e não resistia: colocava um banco para subir até à altura onde estavam pendurados, munido dum canivete ou faca de cozinha, ia tirando umas lascas, que comia com pão. Maravilha das maravilhas. Para esconder esta ousadia, barrava o presunto com uma mistura de azeite e pimentão doce. Depois de “encetados” já não havia restrições.
  • Os chouriços, como a vara era enorme, com muitas unidades, não andariama contá-los todos os dias e nem sei se eram contados, tirava um chouriço que escondia e ia comendo umas rodelinhas com pão;
  • À margem da matança do porco, mas usando, também, estas artimanhas: untava o pão com azeite e colocava camadas de açúcar amarelo por cima, para absorver o azeite, até escorria entre os dedos. Depois de devorado o pão, ainda, lambia os dedos (qual iguaria, qual bolo, isto era o máximo).

F. Santos - Memórias de infância

31 de maio de 2020