segunda-feira, 16 de abril de 2018

A cozinha da minha avó, os serões e outras histórias

A cozinha da minha avó tinha uma configuração retangular, solo de terra batida, paredes irregulares de pedra sem reboco, na entrada no canto do lado direito situava-se a lareira, que era composta por duas pedras em paralelepípedo, onde assentavam as panelas, que se aproximavam ou afastavam conforme o tamanho do tacho e chaminé para sugar os fumos. Nessa zona da lareira, as paredes com o fumo, ganhavam uma fuligem negra, que era raspada de vez em quando. Do lado esquerdo, ao longo de toda a parede, havia uma vara, onde eram pendurados os chouriços e os presuntos: o fumeiro. Ao fundo havia um amontoado de lenha que era usada para fazer o lume.  A cinza que saía da queima da lenha, era utilizada para adubar a terra, onde se semeava alhos e cebolas. 

Não tenho fotos da cozinha da minha avó, mas gostaria de ter!
Cozinha rústica
(esta não era a cozinha da minha avó, mas tem algumas semelhanças, esta já tinha alguns ladrilhos)
 
Panelas antigas, onde podemos ver a panela de tripé que dispensava as pedras

Nas noites de inverno, os meus pais, os meus tios (irmãos da minha mãe) e os primos da minha mãe, juntavam-se  todas as noites nesta cozinha, para um serão ao redor da lareira, sentados em bancos, em pedras ou troncos de árvore, conversando, hoje não faço ideia do que falavam, deviam falar do tempo, da agricultura, das coisas que os preocupavam ou falavam e cortavam na casaca de algum vizinho, ao mesmo tempo iam petiscando umas rodelas de chouriço assado na braseira e uns nacos de presunto com o pão que era cozido semanalmente no forno a lenha que o meu pai tinha construído ao lado da casa. Petisco regado com um vinho tinto. Entretanto eu e os meus primos, brincávamos lá fora, porque naquela idade não havia frio que nos perturbasse!
 
Fumeiro

Era assim o serão até altas horas da noite, repetindo-se durante todo o inverno. No verão o serão era na rua ao ar livre e muitas vezes ficávamos no "almanxar", onde dormíamos, ao lado das esteiras com figos, amêndoas ou milho.

Almanxar na charneca algarvia

Quando não chovia eu e o meu primo Vítor Simões brincávamos na rua. Lembro-me que uma vez, numa noite de luar, a brincadeira era com canas , tipo dardo. O desafio constava de quem atirava a cana mais longe, eu tinha menos um ano e meio que ele, ele atingia sempre uma distância maior, nisto eu dou um salto com a cana na mão para tentar alcançar um ponto mais distante e ao elevar-me a cana saltou-me da mão e foi direitinha à cabeça do meu primo. Era sangue por todos os lados. Chorávamos os dois, ele porque naturalmente lhe doía e eu porque fiquei assustado com todo aquele sangue. Felizmente não passou dum ligeiro arranhão, depois de limpo quase não se notava e sem quaisquer consequências. Nessa noite estivemos à beira de apanhar uma tareia, mas devido ao ferimento, passámos  sem o devido e merecido corretivo.

Noutra ocasião, desta vez sozinho, estava a construir uma fisga e imaginei que podia colar as tiras de borracha cortadas das câmaras de ar das bicicletas, queimando-as na lareira. Quando a borracha estava sobre as brasas, já deitava um cheiro horrível, apercebi-me da presença do meu pai na rua, puxo rapidamente as tiras de  borracha, uma delas dobrou-se e a parte que estava a arder veio cair-me em cima das costas da mão esquerda, ficando colada, arranquei-a, fiquei com a mão em carne viva e doía-me imenso. Então fui meter a mão dentro dum balde de água, as dores continuaram, mas tive de suportar e andei mais duma semana com a mão escondida, o tempo suficiente para curar a ferida. Nessa altura era novo e os tecidos regeneravam-se com facilidade. Ainda tenho o sinal na mão das tropelias desse tempo.

 Fisga

F. Santos - Memórias de infância
15 de abril de 2018

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