domingo, 28 de junho de 2020

Depois do "O petisco que saíu caro!"

O que nos salvou, foi passar a perna ao comandante de companhia!
1º Sargento Fernando Reis e Furriel Miliciano Fernando Santos 
Pesca na ilha de Luanda

“Em consequência as nossas finanças ficaram em baixo e, tivemos de tomar uma medida imediata, mudarmo-nos da residencial para a Messe de Sargentos, que ficava mais longe da Baixa, mas sem custos”. Depois deste episódio relatado no testemunho, “O petisco que ficou caro!”, aquelas medidas apenas resolviam uma parte do problema: por um lado não queríamos apresentar-nos nos “Adidos” para beneficiar de alimentação gratuita, porque isso era sinónimo de serviços “certos” todos os dias; por outro lado, o que nos interessava era continuar, até ao embarque, a fazer as nossas noitadas e desfrutar dos saborosos petiscos que nos oferecia esta bela cidade de Luanda.

Messe de Sargentos de Luanda - anos 70

Na manhã do dia seguinte, acordámos cedo. A minha cama ficava mesmo ao lado da do 1º Reis. Ele sentou-se ao meio da cama virado para mim, com a cabeça baixa e as mãos a tapar o rosto. Repentinamente, levantou a cabeça e disse: “Oh Santos, tenho a solução para o problema!”, ao que  eu questionei: “Qual é meu primeiro?”; ele nem esperou muito e atirou: “este mês vamos passar a perna ao capitão Carrilho!”; olhei para ele, de boca aberta e interroguei-o: “mas como?”; ele esperou um pouco como se estivesse a decorar um discurso convincente, de seguida, sem pestanejar, explicou a estratégia: “vamos vender as bebidas de representação deste mês!”; sem me dar uma deixa fez logo uma pergunta: “o que é que achas?”; fiquei indeciso, mas argumentei: “mas ele vai querer receber essas bebidas!”; ato contínuo, desenvolveu logo o raciocínio: “vamos dizer-lhe que este mês, por a comissão já ter terminado em maio, não tivemos direito a essas bebidas”; ao que eu, sem pensar muito, respondi: “para nosso bem e para lixar esse gajo, até fazemos uma festa!” e perguntei: “mas onde vamos vendê-las?”, ele continuou: “temos de procurar um bar noturno que as queira comprar e ao preço militar acrescido duma pequena percentagem, eles não vão recusar”. Concordei de imediato.

Havia, no entanto, de encontrar um bar noturno, o que para nós não era assim tão difícil, porque isso era o que não faltava na nossa querida Luanda dos anos 70. Escolhemos um bar que se situava na baixa. Já não me lembro, a esta distância no tempo, qual o bar selecionado. Nessa mesma noite, decididos, pusemo-nos a caminho rumo a esse bar. Quando chegámos ao bar, entrámos, tocava uma música de fundo que nos levava a um embalar até às nuvens. Não estávamos ali para adormecer, sentámo-nos numa mesa de dois lugares, próximo do balcão, numa fila junto à parede a seguir à entrada. Do lado oposto as mesas eram compostas com mais cadeiras. Mal nos sentámos, duas meninas acercaram-se da nossa mesa, aconselharam-nos a mudar para outra mesa de 4 lugares, ficaríamos, assim, mais à vontade. Acedemos, mas o 1º Reis sem deixar que a conversa se prolongasse por muito tempo, tomou logo a iniciativa do “diálogo”: “hoje queremos falar com o patrão!”, uma delas ainda argumentou com ar de muito convencida: “não pode ser, o patrão hoje não recebe ninguém …”, ao que eu disse: “vá lá falar com ele e diga-lhe que estão aqui 2 militares que querem propor-lhe um negócio!”. Assim foi! A menina que menos tinha participado no diálogo, ainda que contrariada, dirigiu-se para interior, uma espécie de reservado. Regressou ao fim de algum tempo com a resposta: “podem entrar, o patrão vai recebê-los”.

Seguimos a menina até à porta dum dos anexos. No interior desse anexo, ao fundo, sentado atrás da secretária, com o cachimbo ao canto da boca, a atirar umas fumaças para o ar, estava um senhor sisudo de meia idade com uma barriguinha bem nutrida, muito mais velho do que eu e talvez mais velho do que o 1º Reis. Cumprimentámo-nos com um aperto de mão e um sorriso disfarçado. O diálogo não foi longo, dissemos ao que íamos e perguntámos-lhe se estava interessado no negócio. Depois de alguma conversa, acertamos o preço, no final ele perguntou: “então quando vamos fazer a transação?”; retorquimos: “quando o senhor achar por bem!”; ao que ele voltou a questionar: “pode ser agora?”. Não esperávamos um negócio tão rápido, contivemos o nosso entusiasmo, argumentamos em tom de pergunta e seguida duma exclamação: “como agora? Não temos aqui as bebidas!”; então ele de imediato tranquilizou-nos: “não há problema, vamos no meu carro, trago as bebidas, pago na hora, vêm comigo até ao meu estabelecimento, onde serão meus convidados e esta noite será tudo por minha conta!”. Terá feito um bom negócio, porque o preço terá sido bom para ele e eram algumas caixas de várias marcas de Whisky e outras bebidas (doces e gins).

E assim foi…  Mais um problema resolvido, os petiscos continuaram em Luanda. No dia 22 de junho de 1971, regressei a Lisboa no Vera Cruz, o 1º Reis continuou em Luanda na comissão liquidatária da companhia, aí terá informado o capitão Carrilho que naquele mês a manutenção militar não tinha fornecido as bebidas de representação por ser um mês depois de terminada a comissão. Pelo que vim a saber mais tarde, correu tudo bem…

F. Santos - Memórias de Angola
domingo, 28 de junho de 2020