sábado, 6 de janeiro de 2018

"O Furriel e o Cabrito"


Luanda já tinha ficado para trás. Desembarcámos  no porto desta cidade no dia 21 de maio de 1969, ainda, a tempo de desfilarmos perante as altas patentes militares e civis, no dia 10 de junho.

Mal tivemos tempo para arrumar a mala e já estávamos na "picada". O nosso destino era o Dange, lugar onde não havia nada, ou melhor só havia o rio e a floresta. Construímos o nosso acampamento com as nossas próprias mãos e a ajuda duma máquina da engenharia.

Condomínio de luxo no Dange

Entretanto, já tínhamos sofrido a primeira "baixa", na passagem pela fazenda Maria Fernanda (história que já contei noutro testemunho), depois da chegada, logo a seguir, sofremos a segunda "baixa" (esta história está mais difícil de narrar...). E ainda tivemos mais 4 "baixas" até final da comissão.

Mas vamos ao que nos trouxe aqui: "O furriel e o cabrito".

Numa das operações que realizávamos regularmente, ao passarmos por uma "lavra" (terra de cultivo), os indígenas puseram-se em fuga, mas para trás deixaram um cabrito que foi trazido para o acampamento e que o nosso amigo Furriel veio a adotar. A partir daí ficaram amigos inseparáveis. Andavam pelo acampamento juntos, iam beber água ao rio, passeavam pelas imediações. Só não dormiam juntos: o Furriel pernoitava no barracão destinado aos sargentos e o Cabrito ficava preso nas traseiras.

Certa noite, já bem entrada, eis que se começou a ouvir um diálogo interessante junto à porta do Bar de Sargentos. Era nem mais nem menos que o Furriel (já a sofrer dos efeitos do cacimbo) e o seu inseparável amigo Cabrito:
Furriel - "Tu não podes entrar aqui"
Cabrito - "Méeeee..."
Furriel  - "Já te disse, não podes entrar"
Cabrito - "Méeee...."
Furriel - "Tu não és sargento, não podes entrar"
Cabrito - "Méeee..."
Bar de Sargentos no Dange - O militar na foto não é o furriel desta "estória"
Furriel - apontando para o letreiro que dizia 'Bar de Sargentos', perguntou: "Tu sabes ler?"
Cabrito - Méeee..."
Furriel - "Ali está escrito 'Bar de Sargentos', não podes entrar"
Cabrito - "Méeee..."
Alguém no interior do bar disse: "oh Cristo, deixa lá entrar o Cabrito"
Furriel - "Não! Não entra!".
E não entrou. Mas não sem que antes tivesse respondido: "Méeeeee..."

Bar de Sargentos no Dange

Passados alguns dias o Furriel foi escalonado para uma operação apeada que demorou alguns dias (eram normalmente de 3 a 5 dias). O seu grande amigo, Cabrito, não foi autorizado a acompanhá-lo. Deu-se então a separação, que viria a ser definitiva: durante a ausência do Furriel, o Cabrito acabou no caldeirão e o Furriel no seu regresso, ficou ainda mais "cacimbado" do que já estava, infringiu os regulamentos militares, foi punido com 10 dias de prisão disciplinar e transferido para outra companhia.

Reencontramo-nos em Luanda quando já aguardávamos o regresso. Continuava castiço como era seu timbre, acompanhou-nos na viagem a bordo do "Vera Cruz" até Lisboa e seguiu o seu destino.

O nome usado é fictício.

F Santos - Memórias de Angola 
quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

PS - O Furriel reside atualmente, algures, no Algarve, dedicou-se à agricultura e segundo testemunhos recentes, ainda não se curou do "cacimbo".
FS

8 comentários:

  1. Ora bolas...foi indecente o que fizeram ao pobre do cabrito. Já agora quais foram as infrações praticadas pelo tal furriel que mereceram 10 dias de prisão?

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  2. Não recebeu nada de volta? Nem uma medalha para o cozinheiro'

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  3. Uma história bem bem contada que eu admiro com grande satisfação

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  4. Tive eu no Luquembo uma cabritinha a que chamei Juliana. desde pequenina a criei e era como um caozinho. Chamava por ela e la vinha a correr e se subia com as patas igual que um cao. Tenho alguma fotografia com ela. Certo dia sai do quartel (fui 1º cabo Trms) voluntario para uma PSIC. total 6 ou 8 dias, quando cheguei ja a cabrita estava assada pelo Dias cozinheiro pedido feito pela equipa de trms. Toral ainda cheguei a tempo de comer um bocado da cabrita que com tanto jindungo deu comida para 18 comensais. So nao sobrou bebida. CCS B:ART 3881. !º cabo Veiga. abraços amigos.

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  5. Gostei da estória...Pelas minhas andanças por Angola 1970/1974 eu tinha um leopardo fêmea, domesticada que andava comigo dentro da carrinha Citroen, toda a estória esta contada nos meus 7 livros que estão na Internet no site palancanegra ela não terminou a vida em churrasco, como a cabrita, eu nunca teria feito uma coisa destas...Enfim, a fome da para fazer tudo.

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  6. Em 1969, no Lumege - O 5º. Grupo da 20ª. Companhia de Comandos, teve uma história idêntica, de sargentos, mas foi com um leitão a quem foi posto o nome de "SIROCO". Acabou na barriga dos comandos da 1ª. e 2ªs. equipas.
    Se estiverem interessados, contarei a história doinfortunado "SIROCO".

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  7. Tenho um passado que também é parte da minha história em Angola e que também está relacionada com um cabrito.
    Estavamos em Catete, a companhia que fomos substituir - já em 1975 - deixeou lá um cão rafeiro, encopado, que mal que um cabrito na estrada se aproxima-se da Porta-d´Armas era logo filado pelo cão - tinhamos sido avisados de isso e não há história que o cão tenha filado nenhum cabrito à Porta-d´Armas
    O cão, com o nome capitão pernoitava no tren-auto - quem esteve em Catete sabe que o tren-auto ficava lá em baixo.
    certo dia, chega o nosso Comandante o Senhor Capitão Gabriel Gomes Mendes e pergunta: quem fez petiscada aqui ontem? foram os transmiossões - responderam responderam muitos.
    As transmissões ficavam na rectaguarda da secretaria e junto da cantina/bar dos Praças; ora, todos os petiscos que os transmissões faziam era "público". O Comandante dirigiu-se a nós e ordenou: têm que paga 50$00 ao nativo porque diz que lhe comeram um cabrito. Reclamamos: Senhor Capitão, nós petiscamos bacalhau assado - e foi; hoje, ainda sou testemunha de isso. Os transmissões nesse dia fizeram um petisco mas foi bacalhau assado.
    soube-se, depois, que quem comeu o cabrito foi o pessoal do Tren-auto.

    António Galamba Serrano
    Soldado Transmissões 093084/73
    C.caç 4145/74 (comandada pelo Senhor Capitão que acima refiro)

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  8. Parabéns. Fantástica história! Um grande abraço.

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