domingo, 17 de junho de 2018

A primeira mala... e a chuva

"As 'barragens' e as molhas"

Durante a instrução primária, nos primeiros meses de aulas, de meados de outubro a meados de março, era raro o dia em que não chovia, por vezes torrencialmente.

Nesses dias as molhas eram constantes, muitas vezes duas por dia, antes e depois de entrar na sala. Não me lembro de alguma vez ter usado chapéu de chuva ou capa impermeável, até porque isso me inibiria nas brincadeiras. Enxugávamos a roupa no corpo durante o dia.

 Um barranco com água da chuva

Na 1ª classe a minha mãe tinha-me comprado uma mala castanha de papelão, com reforço metálico, dobradiças e fecho de pressão. Esta mala destinava-se a transportar os livros, cadernos e restante material escolar. Eu gostava muito desta mala, era uma mala bonita e de alguma maneira fazia inveja aos colegas que não a tinham.

Mala de papelão com reforço metálico

Passado algum tempo, num dia em que choveu muito, eu e alguns amigos, num dos caminhos em direção à minha casa, com um barranco ao lado, decidimos aí construir uma barragem. Coloquei a mala ao lado do caminho, junto duma árvore e mãos à obra: pedras, troncos, barro vermelho e tudo o que havia para estancar e criar uma bacia de água naquela charneca. Durante a construção não conseguimos evitar alguns rebentamentos, o que prolongou no tempo os trabalhos, mas sempre fomos conseguindo estancar a saída da água, até que ficou terminada.

Quando nos preparávamos para contemplar a nossa obra, a chuva começou a cair com redobrada intensidade. Estávamos à espera que a barragem enchesse ainda mais, transbordasse, rebentasse e provocasse um grande cheia, com inundação. Nisto  lembrei-me da mala e fui buscá-la. Nesse momento, aconteceu o que nunca tinha imaginado, ao agarrar na parte do cartão, começou a desfazer-se e em pouco tempo fiquei com pouco mais do que a parte metálica nas mãos. Ainda assim, consegui salvar os livros e cadernos, mesmo molhados e o resto do material. A barragem rebentou mas não deu para fazer a festa, ou pelo menos eu não a fiz.

Ao chegar a casa, com algum receio do que poderia acontecer devido ao desastre, fiquei encolhido, quando fui confrontado pelo meu pai, contei a "estória" à minha maneira, omiti por completo a azáfama com a barragem. Desta saí ileso e aliviado, houve compreensão pelo sucedido e a chuva acabou por arcar com todas as culpas.

Havia que salvar o que restava, livros e cadernos, já que o restante material: pedra, lápis, borracha e lápis de pedra, eram à prova de água. A minha mãe colocou os livros e cadernos que estavam molhados em cima duma mesa e passou-os com um ferro de engomar, que aquecia com brasas. Ficaram razoavelmente direitos e utilizáveis sem qualquer problema, a não ser uma pequena sujidade com as marcas da água.

Depois do "acidente" necessitava de ter alguma coisa para transportar o material, então, novamente, a minha mãe, a gestora lá de casa, comprou ganga azul que normalmente servia para fazer as calças dos homens que trabalhavam na agricultura. A minha avó, a artesã da família, fez uma bolsa (não tão bonita como a da imagem), para levar a tiracolo, que eu detestava antes, mas dadas as circunstâncias até fiquei "feliz".

Bolsa de ganga azul

F. Santos - Memórias de infância
11 de junho de 2018