sexta-feira, 8 de junho de 2018

O Privilégio de ter botas ou o problema de as ter!

"Com este par... ia dando Azar" 

Entre a ponte de Santo Estévão e a Norinha, junto à estrada alcatroada que ligava Silves a São Bartolomeu de Messines, morava o Sr. José Correia, agricultor e sapateiro de profissão. Tinha a sua oficina de sapateiro, na cave da casa onde residia, do lado oposto à estrada, com entrada pela horta.

Foto de Oficina do Sapato - Sapateiro Mirasol

Antes de entrar para a escola primária, a minha mãe levou-me à oficina de sapateiro, deste senhor, para encomendar um par de botas, para serem usadas por mim: entrei e sentei-me numa cadeira; o sapateiro mandou-me descalçar as sandálias; colocou o meu pé sobre um folha de cartão;  desenhou-o com um lápis nessa folha e mediu-lhe o perímetro com uma fita métrica. A minha mãe fez-lhe algumas recomendações: as botas tinham de ser cardadas com várias filas de cardas; ter protetores à frente, atrás e nos lados; deviam ficar com uma folga à frente, portanto, maior do que o pé, para serem usadas durante um longo período de tempo. Mais tarde voltei à oficina para fazer a prova e passados alguns dias ficaram prontas. Nessa ocasião, a minha mãe, também comprou  um rolo de sebo, para as ensebar. Ficaram uma beleza!

Botas cardadas. Foto: Blogue Fragas e Pragas

De princípio não me adaptei muito bem, antes só tinha usado sandálias, as botas faziam-me "reduras" nos artelhos (tornozelos) e muitas vezes tive de voltar a calçar sandálias (que eu não gostava de usar, porque diziam que era calçado de meninas), mesmo em dias de chuva. Ao fim de algum tempo, os pés tiveram de se conformar e até já me movimentava com elas sem problemas.

Numa memória que escrevi: "Um pouco dos primeiros tempos de menino e nos bancos de escola", falei das botas, ou melhor sobre o desconforto de as ter, narrado no  texto, extraído do testemunho, dessa memória:

"... o número dos que andavam descalços ultrapassava os que usavam botas cardadas e com protetores, amolecidas pelo sebo e compradas para durarem até à eternidade. Nos jogos de futebol que se realizavam no pátio da escola, todos tinham de jogar descalços - era a igualdade a impor-se por força da justiça das crianças. No jogo da apanhada, havia a convicção de que quem andava descalço corria mais do que os outros - aqui as botas eram postas de lado e de novo a igualdade, agora, por outras razões."

Um certo dia jogávamos à apanhada, no recreio da escola, depois de terminadas as aulas. Nessa ocasião, mais uma vez as botas foram postas de lado. Guardei-as numa toca duma alfarrobeira centenária, que se situava na parte de baixo do local da brincadeira. 

Alfarrobeira centenária

Terminado o jogo, segui com o meu grupo de amigos que residiam no mesmo sentido, para nascente, em direção à minha residência. As botas continuaram bem instaladas na toca e só dei pela falta delas quando cheguei a casa. Não disse nada a ninguém, calcei as sandálias e pensei "amanhã vou buscá-las  e ninguém fica a saber!". No entanto, fiquei inquieto: "será que as botas ainda estarão na toca?". Na manhã seguinte ia a sair de casa descalço, a minha mãe reparou e interpelou-me, perguntando com ar de "marafada": "Fernando, vais descalço para a escola?"; eu respondi sem pestanejar: "vou, na escola andam todos descalços!"; mas a minha mãe não ficou muito convencida, não quis saber da justificação e ordenou-me: "vai já calçar as botas."; aqui as coisas ficaram mal e tive de contar a "verdade": "deixei-as ontem na sala de aulas"; se a situação estava mal, ainda piorou, porque de seguida fez-me uma ameaça: "quando voltares da escola quero ver aqui as botas, senão tens de te haver com o teu pai..."

O problema tinha ficado mesmo muito complicado: nessa manhã, não passei pela casa de nenhum amigo, nem brinquei pelo caminho, posso dizer que voei e cheguei junto da alfarrobeira em tempo record. O meu maior medo não era que alguém as tivesse encontrado, embora esse perigo também existisse, mas como em tempos, tinha visto um cão andar com uns sapatos na boca, comecei a pensar que poderia ter acontecido o mesmo com as minhas "queridas" botas. Abeirei-me do tronco, atirei a mala para o chão e fui de rompante direto à toca: ali estavam elas, direitinhas, como as tinha deixado! Nessa manhã, fiquei eufórico, para mim, ter encontrado as botas, foi melhor do que ganhar na sorte grande ... e o resto do dia correu-me maravilhosamente...

Como a minha mãe gostaria que acontecesse, este par não durou eternamente, voltei a ter outros pares de botas ..., o sr. José Correia tinha de ganhar a vida!

F. Santos - Memórias de infância
05 de junho de 2018

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