"Com este par... ia dando
Azar"
Entre a ponte de Santo Estévão e a Norinha, junto à estrada alcatroada que ligava Silves a São Bartolomeu de Messines, morava o Sr. José Correia, agricultor e sapateiro de profissão. Tinha a sua oficina de sapateiro, na cave da casa onde residia, do lado oposto à estrada, com entrada pela horta.
Entre a ponte de Santo Estévão e a Norinha, junto à estrada alcatroada que ligava Silves a São Bartolomeu de Messines, morava o Sr. José Correia, agricultor e sapateiro de profissão. Tinha a sua oficina de sapateiro, na cave da casa onde residia, do lado oposto à estrada, com entrada pela horta.
Foto de Oficina do Sapato - Sapateiro Mirasol
Antes de entrar para a escola primária, a minha mãe levou-me à oficina
de sapateiro, deste senhor, para encomendar um par de botas, para serem usadas
por mim: entrei e sentei-me numa cadeira; o sapateiro mandou-me descalçar as
sandálias; colocou o meu pé sobre um folha de cartão; desenhou-o com um lápis nessa folha e mediu-lhe
o perímetro com uma fita métrica. A minha mãe fez-lhe algumas recomendações: as
botas tinham de ser cardadas com várias filas de cardas; ter protetores à
frente, atrás e nos lados; deviam ficar com uma folga à frente, portanto, maior
do que o pé, para serem usadas durante um longo período de tempo. Mais tarde voltei
à oficina para fazer a prova e passados alguns dias ficaram prontas. Nessa
ocasião, a minha mãe, também comprou um
rolo de sebo, para as ensebar. Ficaram uma beleza!
Botas cardadas. Foto: Blogue Fragas e Pragas
De princípio não me adaptei muito bem, antes só tinha
usado sandálias, as botas faziam-me "reduras" nos artelhos
(tornozelos) e muitas vezes tive de voltar a calçar sandálias (que eu não
gostava de usar, porque diziam que era calçado de meninas), mesmo em dias de
chuva. Ao fim de algum tempo, os pés tiveram de se conformar e até já me
movimentava com elas sem problemas.
Numa memória que escrevi: "Um
pouco dos primeiros tempos de menino e nos bancos de escola", falei
das botas, ou melhor sobre o desconforto de as ter, narrado no texto, extraído do testemunho, dessa memória:
"... o número dos que andavam descalços ultrapassava
os que usavam botas cardadas e com protetores, amolecidas pelo sebo e compradas
para durarem até à eternidade. Nos jogos de futebol que se realizavam no pátio
da escola, todos tinham de jogar descalços - era a igualdade a impor-se por
força da justiça das crianças. No jogo da apanhada, havia a convicção de que
quem andava descalço corria mais do que os outros - aqui as botas eram postas
de lado e de novo a igualdade, agora, por outras razões."
Um
certo dia jogávamos à apanhada, no recreio da escola, depois de terminadas as
aulas. Nessa ocasião, mais uma vez as botas foram postas de lado. Guardei-as
numa toca duma alfarrobeira centenária, que se situava na parte de baixo do
local da brincadeira.
Alfarrobeira centenária
Terminado o jogo, segui com o meu grupo de amigos que
residiam no mesmo sentido, para nascente, em direção à minha residência. As
botas continuaram bem instaladas na toca e só dei pela falta delas quando
cheguei a casa. Não disse nada a ninguém, calcei as sandálias e pensei
"amanhã vou buscá-las e ninguém
fica a saber!". No entanto, fiquei inquieto: "será que as botas ainda
estarão na toca?". Na manhã seguinte ia a sair de casa descalço, a minha
mãe reparou e interpelou-me, perguntando com ar de "marafada": "Fernando, vais
descalço para a escola?"; eu respondi sem pestanejar: "vou, na escola
andam todos descalços!"; mas a minha mãe não ficou muito convencida, não
quis saber da justificação e ordenou-me: "vai já calçar as botas.";
aqui as coisas ficaram mal e tive de contar a "verdade":
"deixei-as ontem na sala de aulas"; se a situação estava mal, ainda
piorou, porque de seguida fez-me uma ameaça: "quando voltares da escola
quero ver aqui as botas, senão tens de te haver com o teu pai..."
O problema tinha ficado mesmo muito complicado: nessa
manhã, não passei pela casa de nenhum amigo, nem brinquei pelo caminho, posso
dizer que voei e cheguei junto da alfarrobeira em tempo record. O meu maior
medo não era que alguém as tivesse encontrado, embora esse perigo também
existisse, mas como em tempos, tinha visto um cão andar com uns sapatos na
boca, comecei a pensar que poderia ter acontecido o mesmo com as minhas
"queridas" botas. Abeirei-me do tronco, atirei a mala para o chão e
fui de rompante direto à toca: ali estavam elas, direitinhas, como as tinha
deixado! Nessa manhã, fiquei eufórico, para mim, ter encontrado as botas, foi
melhor do que ganhar na sorte grande ... e o resto do dia correu-me maravilhosamente...
Como a minha mãe gostaria que acontecesse, este par
não durou eternamente, voltei a ter outros pares de botas ..., o sr. José Correia tinha
de ganhar a vida!
F. Santos - Memórias de infância
05 de
junho de 2018
Boa historia 😊
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