domingo, 27 de maio de 2018

A vida no Lungué-Bungo ..., e o "CABO GULOSO"

Lungué-Bungo, última etapa da nossa comissão de serviço em Angola. O rio com a sua ponte, o agrupamento de fuzileiros e o campo de futebol, na margem direita a sul da ponte. A "Ilha do Hipopótamo" e aquilo a que chamamos praia, a norte da ponte. Na direção de Gago Coutinho  do lado direito da estrada, no sentido Luso, Gago Coutinho, o nosso aquartelamento, a seguir à casa de negócio e habitação do senhor Fonseca, comerciante e agricultor, radicado em Angola, havia muitos anos, onde vivia com uma angolana. A mulher e os filhos, tinham regressado a Portugal, a seguir ao início da Guerra Colonial, para a cidade de Coimbra. O quimbo, em frente das nossas instalações, do lado esquerdo da estrada.

Foto de Manuel Pimenta: à direita, em primeiro plano a casa do Sr. Fonseca.
A  entrada do nosso aquartelamento situava-se, logo, a seguir. Em frente o Quimbo

Lisboa ficava longe, 9669 Km, como podemos ver o furriel miliciano João Merca a apontar para o pilar. Era longe, mas já estava perto o dia do regresso.

Pilar da ponte com o furriel miliciano Merca a indicar a distância para Lisboa

Muitos camaradas mergulhavam para a água do gradeamento superior da ponte, duma altura, que deveria rondar, entre os 10 e os 15 metros. Aventura que não me seduziu, talvez pelo perigo, talvez por medo, enfim não saltei. Outros camaradas tentaram o ski, alguns com algum sucesso, mais uma vez fiquei pelo Sku, com algumas quedas, antes de começar a skiar.

O furriel Merca a treinar ski (ao que parece com sucesso)

A praia (1º Reis e furriéis Zé Simões, Fernando Santos e João Merca)

O rio e a Ilha ao fundo

A casa de comércio do senhor Fonseca (vendia tudo) era, frequentemente, palco de muitos petiscos noturnos, já que os petiscos diurnos tinham como cenário a Ilha. Na Ilha, acompanhavam-nos, nestas diversões, os militares do agrupamento de fuzileiros, aliás eram eles que nos transportavam nos botes. Estes petiscos eram sempre bem regados com "catembe", "tricofiht", "banheira" e outras misturas, com tudo o que havia para misturar.

No regresso, raras foram as vezes em que não tivemos de descer o rio ao sabor da corrente. O homem do leme, depois da confraternização, tinha alguma dificuldade em acertar com a passagem: as hélices dos botes ao passarem no meio das pedras eram destruídas por estas, nem as suplentes nos salvavam e também acabavam por se partir.

Petisco no Fonseca

Petisco na Ilha (pode ver-se a lata com a magnifica mistura)

Na retaguarda do nosso aquartelamento, dentro do perímetro de segurança a cargo da nossa companhia, estavam as instalações que serviam de residência aos trabalhadores da TECNIL e seus familiares. A TECNIL era a empresa de engenharia contratada pela JAEA - Junta Autónoma de Estradas de Angola, para efetuar a abertura da picada, com vista à construção da futura estrada Luso - Gago Coutinho, asfaltada após a nossa rendição.

Trabalhos na estrada (TECNIL)

Em frente do nosso aquartelamento ficava o "quimbo". Quando o sol se escondia na linha do horizonte e ainda pairava no ar o cheiro à terra húmida, ao longe, ecoava o som dos tambores, anunciando a presença de enfermos e curandeiros. Estes curandeiros, uma espécie de espíritas, tentavam afugentar o mal que possuía os indígenas,  debilitados pela doença: uma fogueira, um bidon com água a ferver, ramos de palma, o toque do tambor acompanhado de cânticos e exorcismo. Para afastar o mal, ia-se salpicando o paciente com a água quente (muitas vezes a ferver), até este entrar em transe. Participei algumas vezes neste ritual, acompanhado de outros camaradas, no interior do quimbo.

Raras eram as ocasiões em que no dia seguinte, não havia a festa da despedida, o doente, na maioria dos casos, acabava por falecer e voltava o som do tambor, os cânticos e nestas ocasiões o banquete. Segundo os nativos, o banquete, era para comemorar não terem sido eles a partir.

O tambor e o batuque também se faziam ouvir noutras comemorações indígenas, não haveria noite em que não tivéssemos este ritual africano.

Tambores (batuque)

Fazíamos, então, proteção à “JAEA”, na construção da estrada Luso, Gago Coutinho. Nesta missão os militares que participavam na proteção tinham direito a um reforço alimentar, composto por uma sandes (pão, chouriço ou queijo) e um copo de vinho. Era entregue a um elemento do grupo de combate, escalonado para fazer esse serviço, a totalidade dos pães e do chouriço ou queijo que depois cortava e fazia as sandes no local.

Local de apoio à proteção, onde era distribuído o reforço

Chegou a vez a um 1º cabo do 3º grupo de combate, a distribuição do reforço alimentar. Foi abrindo pães, colocando o chouriço e enchendo o púcaro de vinho, um a um, distribuindo pelos camaradas, a determinada altura já não tinha mais ninguém na fila a quem distribuir e ainda sobravam 3 pães, chouriço e vinho, pensou: "eh pá  hoje descuidaram-se e puseram sandes e vinho a mais", então começou a completar os pães sobrantes com o chouriço e ia comendo e bebendo, até que terminou, já muito bem fornecido. Nisto aparecem 3 camaradas que estavam na proteção e só podiam vir depois da rendição, dirigiram-se ao nosso cabo: "dá aí as nossas sandes!", - pergunta o cabo: "quais sandes?" - os militares que estavam a contar com o reforço responderam: "as que temos direito",  - retorquiu o cabo: "já as comi todas, não vieram durante a distribuição!", - o furriel que estava de serviço, ao ouvir este diálogo, interrompeu-os e exclamou: "Oh seu 'CABO GULOSO', agora, vais ficar uma semana sem comeres sandes!".

A partir deste dia ficou conhecido como o "CABO GULOSO" e ainda hoje nos almoços de confraternização é assim que é identificado.

 
Cabo Guloso em cima do para choque da viatura, ali mesmo ao centro

O Lungué-Bungo terá sido, depois de Luanda, o local onde melhor nos sentimos e com muita "estória" para contar. É a nostalgia desse tempo, a falar, onde a guerra, ficou um pouco para trás.

A história do "CABO GULOSO" foi-me contada pelo ex-1º Cabo, Joaquim Pereira dos Santos. Obrigado Santos, pela narrativa!

Fotos de: M Pimenta, J Merca, H. de Jesus e J. Santos
F. Santos - Memórias de Angola
terça-feira, 22 de janeiro de 2018