domingo, 31 de março de 2024

Monte Branco, 08 de Junho de 1969

Katia Chausheva
A,

Chego, neste momento, a casa, ainda não vou saber se tenho ou não tenho carta tua. Vou à cozinha comer qualquer coisa, ando pela casa, dou uma volta pelo quintal, apanho um malmequer e ponho-me a desfolhá-lo pétala a pétala. Penso em ti. Desde que foste para Angola, os dias, o céu e os crepúsculos são cada vez mais aborrecidos e monótonos. A aldeia é agora uma cena triste, sem qualquer encanto. Por isso, para bem ou para mal ou para as duas coisas juntas, continuo à espera de uma carta tua. Porque não me escreves? Estás apenas à distância de um simples aerograma. Não terás tempo para me escreveres? Ou ânimo? Ou assunto? Ou é a experiência da guerra? Ou não esperas que os meus dezassete anos compreendam o que tens para me dizer? Será que fazes erros de ortografia e não queres que eu os descubra? Será a tua letra desajeitada? Ou simplesmente consideras que não tens nada para me dizeres? Para encurtar razões, digo-te que me podes escrever algo assim: “Como estás? Como raio te posso escrever uma carta, sem que ela pareça parva, piegas ou indiferente?  Como vês sempre que penso em escrever-te encontro enormes embaraços.”

Num gesto libertador, saio de casa e vou dar um passeio em direção ao Caniné. Observo a água adormecida do canal. Parece imóvel. Talvez deslize suavemente rumo ao por do sol. Dou-me conta de que afinal não. A água anda às arrecuas e tenta retornar ao seu ponto de origem. Olho para a esquerda e vejo os quintais dos vizinhos: uns têm milho seco pronto para a debulha, outros estão ao deus dará. Tudo adivinha o verão, a tarde está quente e os bichos irrequietos escondem-se como podem debaixo das pedras ou dentro da terra.

Regresso a casa. Vejo a tua carta. A tua primeira carta. Seguro-a na mão sem a abrir e desfruto deste precioso instante. Segurar a tua carta é uma forma de estares aqui comigo. Sinto círculos cimbalinos na minha cabeça que não me deixam pensar. Abro a tua carta com cuidado, como se fosse um cristal perfeito. Nela, sobressaem três parágrafos. O que me dirás em três parágrafos? Reparo na pontuação. O que mais me chama a atenção é a forma como a utilizas: não há reticências, nem exclamações, nem interrogações, apenas vírgulas e pontos finais. Porquê?

A tua carta parece uma mensagem lançada, numa garrafa de vidro, por um náufrago, com escassez de meios e que escreve apenas o essencial, na ânsia de apanhar a última curva da terra. Numa guerra, tudo pode acontecer…

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Leonor Santos

sábado, 24 de fevereiro de 2024

Monte Branco, 06 de maio, 1969

Lefawn Hawk
A,
 
Hoje tentei encontrar-te para te dizer que, apesar de estares de partida para Angola, o mais importante dessa viagem era o teu regresso a casa. Não te encontrei em nenhuma rua da aldeia. Ao início da noite, foste tu que vieste ter comigo e me disseste que o teu embarque para a guerra era dali a dois dias, mas que tinhas de ir para Lisboa nessa noite. Ficámos, à minha porta, não sei quanto tempo, recebendo no rosto a luz das estrelas, sem dizer nada. A verdade é que não tínhamos o hábito de conversarmos. Éramos hábeis no não dito, no toca e foge. Um dia, à queima-roupa, perguntaste-me gostas de alguém? Tratava-se, era bom de ver, de ganhares o jogo das cadeiras, a que gostávamos de jogar, ouvindo-me dizer: “sim, gosto de ti”. Ousei segredar-te ao ouvido: “sim”. “E tu?”. E, neste bailado, estávamos atentos para não dar passos em falso. Até porque os nossos encontros eram raros, breves e sempre inesperados, mas muito divertidos.

Daí a instantes ias embora e essa notícia era mesmo triste. Dois anos? Dois anos em Angola, disseste tu. E, leve como um voo de ave, desapareceste em direção à tua casa. Aquilo que eu tinha desejado, nunca iria acontecer: receber uma carta tua. Ainda assim, todas as manhãs, à janela do meu quarto, esperava a chegada do carteiro. As cartas que trazia já as tinha deixado para trás, e descendo a rua, desaparecia na última esquina, sem deixar rasto. Leonor Santos