segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

O alferes que queria tirar a carta de condução

Mas... Havia outras ideias!

Breno Botelho de Vasconcelos, açoriano, natural do concelho de Ponta Delgada, ilha de S. Miguel, era o alferes miliciano que comandava o 3º pelotão da Companhia de Caçadores 2505. Figura franzina, oficial de trato afável e educado, tinha alguma dificuldade em deslocar-se nas operações com incursão nas matas dos Dembos, norte de Angola. Era ajudado algumas vezes, pelos soldados do seu pelotão, no transporte da mochila e algum material.
 
Foto do 1º cabo Arlindo Carlos de uma operação nos Dembos (o que sobrava dum acampamento inimigo abandonado)
 O Alferes Miliciano Breno Botelho de Vasconcelos,  sentado de óculos

Depois de passadas as dificuldades do Dange, com o regresso a Luanda pelo Natal, à nossa companhia foi confiada, entre outras missões (patrulhamento  dos bairros periféricos de Luanda, escolta ao comboio de Luanda/Catete, escolta a colunas MVL para o norte de Angola), a guarda à "rede de Luanda". A guarda à "rede de Luanda" constava de cerca de 50 postos de vigia, começava junto ao mar a nascente e prolongava-se até à outra ponta do mar a poente, numa extensão de cerca de 15 KM, nos limites da cidade (cercada por arame farpado em todo o círculo). Ao longo da rede existia uma "picada", que era percorrida pelas patrulhas de ronda que zelavam pelo bom funcionamento da vigilância. Essas patrulhas eram compostas pelo condutor da viatura e por um graduado (normalmente um furriel ou um alferes). Havia, salvo erro, duas saídas de viaturas (estradas para o Cacuaco e Catete) e, uma de peões, onde era feito controlo das saídas e entradas.
 
Fotos extraídas de slides: do ex-furriel miliciano Manuel Pimenta
A da esquerda é o posto nº 1 e a direita é o início da rede, com entrada no mar
Baia de Luanda nos anos 69/71

O alferes miliciano Breno de Vasconcelos, como a grande maioria dos militares não era portador de carta de condução: ambicionava tirar a carta naquele tempo de estadia em Luanda, não se tinha inscrito numa escola de condução, mas aproveitava todas as oportunidades, nos dias em que estava de ronda à rede (que era quase dia sim dia não). Certo dia em que o Breno estava de ronda, como sempre trocou com o condutor para treinar a condução. Nisto aparece na "picada" outra patrulha. Esta patrulha era formada por um condutor e o comandante do batalhão, tenente coronel António Soares. O comandante mandou parar a viatura onde seguia o nosso alferes e perguntou-lhe: "quem é o responsável da patrulha?", - responde o Breno ao volante do jipe: "sou eu meu comandante", - o comandante interroga-o de novo: "então o que está aí a fazer ao volante?",- diz o Breno: "estou a aprender a conduzir meu comandante",   - o comandante, com cara de poucos amigos, argumenta e ordena: "está a aprender a conduzir, então não tem carta de condução, quando chegar ao Grafanil, passe pelo meu gabinete" - "sim meu comandante" remata o Breno.

Foto cedida pelo Simões: à esquerda o Alferes Miliciano Vasconcelos e à direita Furriel Miliciano Zé Simões

No gabinete do comandante continuou o interrogatório ao alferes prevaricador. Em conclusão: o alferes miliciano Breno Botelho de Vasconcelos, saiu do gabinete com uma pena de prisão e transferência para outra companhia. A companhia de destino foi a CCaç 2569.

Já quase no final de comissão chegou ao nosso conhecimento o seu falecimento, ocorrido a 26 de abril de 1971, num acidente (ver dados do falecimento do alferes). Ver também: Cronologia da Guerra Colonial - 1971 "Em Angola quatro militares da CCaç 2569 morrem em acidente", entre eles estava o alferes miliciano Breno Botelho Vasconcelos.

A sua terra natal, Pilar Da Bretanha, no concelho de Ponta Delgada, homenageou-o, atribuindo o seu nome a uma artéria da localidade "Rua Breno Botelho de Vasconcelos".

Quanto ao tenente coronel, António Soares, depois de terminada a comissão, regressou a Portugal, mas não por muito tempo, voltou a  África para comandar um novo Batalhão. Nesta comissão de serviço, foi saneado por "oficiais que não eram da linha dos que fizeram o 25 de abril ..." e apeado do comando. Esta ocorrência relatada, nas suas próprias palavras, num encontro de graduados e familiares do nosso batalhão. Extrato do vídeo do ex-furriel miliciano Manuel Pimenta:



Faleceu a 2 de setembro de 2014, com 93 anos de idade.

F. Santos - Memórias de Angola
4 de janeiro de 2018

PS. O diálogo entre o alferes e o comandante, poderá não ter sido exatamente como o descrito, mas resulta de muitas conversas com outros camaradas. Seja como for, não deve ter andado longe do relato. As consequências, essas  foram as do testemunho. FS

13 comentários:

  1. Grande memória, Fernando Santos. Eu, como também fui condutor, sei bem dar o valor a este triste episódio de guerra, Foram centenas as aulas de condução que dei a outros camaradas, quase que abri uma escola de condução. Volto a dizer, muito bem descrito......só falta o cheiro a terra molhada e o som de uma batucada...ao longe.

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    1. Tens razão Zé Nobre. Falta esse cheiro a África!
      Estou muito concentrado nos factos, falta-me a poesia...Enfim é o que se pode...

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  2. Andei por lá, 73/75, Cengª9144.As memórias estão cá, as dificuldades e perigos vividos são passado, mas a experiência de vida foi enriquecedora, apesar de tudo.Luanda,o que eras e no que és.

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  3. Sei como tudo se passa, tambem por la passei de 73 a 75, pretenci ao batalhão 4212/73-75. Estivemos em Luanda (Cacuaco)serca de um mês a tirar o IAO, e depois fomos para Cazombo leste de Angola.

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    1. Amigo tamb estive no Cazombo 73/75 era condutor auto no pelotão de canhões 4670/73 quem sabe se alguma vez nos cruzamos .
      Abraço e boa semana

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  4. Eu também passei pela Maria Fernanda "Operação Kissonde" ficamos acampados junto á 1ªponte do Dange.De seguida fomos para a Lumbala Velha de reforço ao batalhão do Cazombo.C.Artª 1523 Cordões Negros

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  5. Fiz o SMO em Luanda de 1971 a 1974.Pertenci ao Agrup. Transmissões e servi no CMsgs do ATmA e do QG.Essa missão durou mais de 2 anos. Passaram pelas minhas mãos centenas de mensagens de todos esses Batalhões e Companhias. Foram tempos, que dadas as circunstâncias, uniram muitos jovens que cumpriram honrada e dignamente a missão que lhes foi exigida. Cumprimento todos quantos nestas páginas deixam os seus testemunhos, enaltecendo também aquele magnífico território pelo qual se sacrificaram. Um abraço a todos. Jorge Pinho - ex furriel miliciano.

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  6. Tambemn andamos nessas zonas e nessas datas eramos a C.CAC.4943 de Intervencao a tudo e a todos,enfim,{E Tudo o Vento Levou}..

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  7. A minha companhia, 1.CCAÇ do BCAÇ 4210- Lumeje( Leste) teve especial cuidado na formação dos condutores aquando do início da comissão,procedendo não só a prática intensiva mas sobretudo à sensibilização não só dos condutores como dos graduados que comandavam as colunas. Resultado ZERO mortos e feridospor acidentes auto. ( não deve ter havido muitos casos iguais)

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  8. A minha companhia a 1. CAÇ BCAÇ 4210 que esteve no Leste ,Luso e Lumeje em 73/74 teve especial cuidado na preparação e sensibilização dos condutores e graduados que comandavam as colunas, o que se traduziu no final da comissão em zero feridos e zero mortos por acidentes com viaturas. Na deve ter havido muitos casos similares nos 13 anos que andamos por África.., Abraço e saúde!

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  9. Também eu tirei a carta em Bissau. Aprendi muito conduzindo um unimog da companhia. Obrigado condutor.

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  10. Olimpio Faróia(Ex-Alf.Mil.)30 de outubro de 2022 às 17:43

    Pertenci á CCAÇ2509/BCAÇ2873-Jun/69-Jul71.Zona de acção no Sub-Sector de Carmona,com sede no Quitexe.A minha Cªfoi sediada em Zalala e as restantes(Ccaç2508 em StªIsabel e 2507 em Aldeia Viçosa.Foi um periodo de muita actividade operacional,com excelentes resultados.Conheci bem a toda a região dos Dembos até Out/70 quando o Batalhão foi transferido para Catete.Além do patrulhamento de toda a área envolvente de Luanda participávamos como reforço em operações de maior envargadura efectuadas em outras zonas.Aproveito para cumprimentar todos aqueles que em Angola honrarem a Pátria.Um abraço a todos os ex-combatentes

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