Não acreditava em bruxas, mas que as
havia, havia...
Depois das 3 horas da tarde, terminadas as aulas na
escola primária da Fonte Figueira, a partir daí era só brincadeira até ao
sol posto: os caminhos eram muitos em direção a casa e por eles íamos fazendo os
nossos jogos, brincadeiras e traquinices, durante o trajeto, quando a noite
chegava já estávamos, na maioria das vezes, em casa ou muito próximo dela. No
entanto nem sempre o recreio "pós laboral" seguia essa direção,
algumas vezes era mesmo em sentido contrário e lá estava eu a caminho dos
Queimados, para uma brincadeira diferente, que quase sempre, era
jogar futebol com os amigos daquelas bandas, principalmente, com os Felícias,
nas traseiras da casa deles (hoje restaurante Casinhas).
Largo nas traseiras da casa
dos Felícias, hoje, frente ao restaurante Casinhas
(na altura era de terra batida e por vezes com muita lama)
(na altura era de terra batida e por vezes com muita lama)
Aconteceu,
assim, muitas vezes, durante os vários anos letivos que frequentei a escola
primária da Fonte Figueira. Um dia houve, e foi o primeiro, em que o jogo devia
estar extraordinariamente bom, que quando me apercebi já o sol se tinha posto;
aqui acordei, peguei na balsa, segui por aquela estrada, subida acima, até um
pouco antes onde moravam os "Correias"; durante este percurso, o medo
não foi muito grande, porque fiz todo o caminho a correr e ainda se via alguma
coisa, ao lusco-fusco, do início da noite; a partir daí, desço em direção às
casas dos "Sequeira Martins, da Isilda e do Gregorinho"; o escuro era
cerrado, não se via nada; no "carreiro" por onde seguia, dum lado
alfarrobeiras, do outro o valado, a minha mente só vislumbrava sombras
imaginárias. Chegado aqui comecei a lembrar-me das "estórias" contadas
pela minha avó, dos bailes e festas de bruxas e lobisomens, nos espojeiros,
entroncamentos e cruzamentos, - nestes eventos, os lobisomens eram os mais
sacrificados, porque eram transformados em burros e tinham de carregar as bruxas
até ao local da "festa", mesmo quando entravam na dança, tinham de
carregá-las no dorso -; quando passava por uma alfarrobeira, encolhia-me junto
ao valado e ao passar dava uma corridinha para me afastar, nem olhava para
trás; ao mesmo tempo prometia a mim mesmo, muito convictamente, em pensamento:
"nunca mais fico a jogar à bola até tão tarde!". Vencido este
obstáculo ainda tinha de subir a encosta até à casa do meu "herói", o
meu tio Manuel Anselmo; mas antes, mais uma provação se aproximava, passar
pelas casas onde morava a família Santos; logo na primeira casa havia um cão,
com quem me dei sempre mal; ultrapassava esse obstáculo contornando a "cerca",
para evitar o animal "feroz" e num "pulo" estava na casa do
meu tio Manel.
As "estórias" que a minha avó me
contava, nada têm a ver com as "estórias" de ficção, com bruxas,
vampiros e lobisomens, que hoje mais ou menos, todos nós conhecemos. Eram sim,
relatos imaginários, sobre pessoas reais, que tinham aquela fama e todos conheciam
e temiam, quando nos cruzávamos com elas, durante o dia, fazíamos cruzes nas
costas, depois de passarem por nós, para afastarmos o feitiço. Eu não levava
muito a sério essas "estórias, mas gostava de ouvi-las: à noite com o
escuro e sozinho pelos "corgos", a conversa mudava de figura...
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Foto do site Boca do Inferno: Lobisomem
(felizmente a minha avó nunca me tinha contado
"estórias" deste personagem comendo criancinhas)
Um
carreiro com alfarrobeiras, próximo do local por onde passava (aqui já sem o valado)
A casa
do meu tio Manuel Anselmo em ruínas
Alívio! Mas atenção, a odisseia
ainda não tinha terminado: chegar a casa, aquelas horas, não era bom sinal para
mim, sempre alguma coisa me aguardava e não seria nada bom, isso, eu posso
garantir; mesmo assim, já estava muito mais leve; o meu tio sempre encobria os
meus desmandos e estava sempre disposto a me defender; eu comecei a queixar-me:
"como é que vou para casa a estas horas e que desculpa vou dar ao meu
pai?"; ele tranquiliza-me logo: "deixa lá! Eu levo-te a casa e digo ao
teu pai que estiveste até estas horas comigo", a minha tia Inácia não
estava muito de acordo, mas não se metia demais na conversa. No caminho para
casa, saltámos mais uns valados, eu, o meu tio, o meu primo e a minha tia,
alumiados por uma lanterna a petróleo transportada pelo "timoneiro"
desta aventura final, o meu tio. Cheguei a casa, são e salvo, conforme o
previsto. Nesse dia, os meus tios passaram ali algum tempo à lareira, onde
muitas vezes se reuniam, enquanto eu e o meu primo brincávamos lá fora. Os
trabalhos de casa podiam esperar até à hora em que eu sentado numa pedra, em
frente à padaria, os fazia na manhã seguinte, em pouco mais de 15 minutos.
Se cumpri a promessa de nunca mais voltar tão tarde? Durante
alguns dias sim, mas voltava novamente ao mesmo, nem sempre com os mesmos
resultados, porque felizmente, também, havia noites de luar.
Noite
de luar no campo
F. Santos - Memórias de infância
21 de agosto de 2018
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