Homenagem a uma figura que nos marcou nos anos 50 e 60 do século XX.
Foto
de Vítor Gomes - Zé Xana, na sua pose preferida, no jardim
Quando recordamos os nossos tempos de juventude, na Escola Industrial e Comercial de Silves, uma figura carismática, como o Zé Xana, vem sempre à nossa memória. Nunca a esquecemos: não por ter sido aluno, nem contínuo, muito menos como professor (apesar de algumas vezes até nos dar lições). Foi, no entanto, uma figura típica e incontornável da nossa escola (não faço ideia se alguma vez lá terá entrado).
Nos intervalos das aulas, estava sempre no jardim, em frente à porta principal, com a sua pose característica. Dali dominava tudo o que o rodeava. Quando por alguma razão não era o primeiro a chegar, vinha sempre em andar apressado, com um ombro descaído, apontando para o pulso, como que a justificar-se. Era como se tivesse ali um relógio (tinha, certamente, um relógio imaginário). Este gesto ele repetia sempre ao toque de saída, de entrada ou segundo toque. Ficava irritado, quando algum de nós não nos dirigíamos para as aulas.
Quando chegava junto dos rapazes, a primeira coisa que lhes dizia era: "amigo, dá um cigarrinho!", depois da primeira fumaça, quase sempre perguntava a quem lhe dava o cigarro "e a moça?" (a moça era a namorada do amigo). Quando voltávamos para as aulas, o Zé Xana recolhia todas as “beatas” dos fumadores, que não tinham acabado o cigarro, assim, ele sem ter dinheiro para comprar cigarros, era o maior fumador.
Ninguém podia ameaçar um amigo, ou uma das suas meninas (que eram todas as alunas da escola), mesmo em brincadeira, o Zé estava sempre na primeira linha, na defesa do ofendido. As vénias que fazia aos professores, com ar respeitoso, quando passavam. Tinha, sempre, uma frase simpática, que identificava a quem se dirigia. Se não gostava de alguém, o que era raro, virava as costas em ar de desprezo.
Muitas vezes comia um bocado das nossas sandes: de chouriço, de fiambre ou de atum com óleo, que lhe escorria pelas mãos. Estas sandes eram compradas, principalmente, pelos alunos que moravam fora da cidade de Silves, no quiosque do jardim (propriedade do Custoidinho, depois do Branquinho e finalmente do Florival). Nalgumas ocasiões, comia apenas metade da parte que lhe oferecíamos: dizia que a outra metade era para mãe. Também quando lhe dávamos dinheiro para comprar cigarros ou comida, guardava no bolso, e dizia: “o dinheiro é para a mãe”. O Zé tinha uma grande adoração pela mãe. Tal, como com os amigos, ou as suas meninas, ninguém a podia ameaçar ou ofender.
Simpático e delicado com as raparigas. O Zé gostava de lhes fazer companhia no regresso da escola. Acompanhava-as até à estação do comboio ou até à camioneta que era conduzida pelo Marinho. Era para as proteger. O Zé dizia que a camioneta era dele, até ficou conhecido, entre os alunos, como o “dono da camioneta do Marinho”. Por isso, era ele que organizava a entrada.
Constava que tinha uma “namorada”, a Madalena, também ela com deficiência. Esse assunto, era tabu para ele: sempre que lhe perguntávamos, onde estava a ”namorada”, ficava muito zangado e saía dali barafustando.
A partir de meados de 1968, com o recrutamento para o Serviço Militar Obrigatório, poucas vezes o encontrei e a partir dos anos 70, nunca mais o vi. Terá, segundo testemunhos, acabado os seus dias num lar, em Silves, onde foi bem tratado.
Muito mais haveria que falar sobre o Zé Xana. As homenagens são sempre feitas a gente "ilustre" que sempre esteve de "barriga cheia", muitas vezes de “mérito” duvidoso. Esta é uma homenagem a um homem simples, com a sua deficiência, mas de enorme bondade; figura simpática e respeitadora a quem ninguém lhe negava um sorriso, uma carícia, um cigarro, pão. Era tanto o que dava, tão pouco o que pedia. Sobre a amizade que ele nutria por alguém era mesmo sincera. O Zé Xana estará sempre, indelevelmente, ligado às nossas vidas.
F. Santos – Memórias de Juventude
26 de agosto de 2020