Emmanuel Sougez |
Monte Branco, domingo, 27 de Julho,1969
A.
Olá. O carteiro entregou-me agora mesmo uma carta tua. E nela não encontro os pontos cardeais que compõem uma carta para uma madrinha de guerra. Afinal de que se fala quando se escreve uma carta dessas? É uma dúvida que tenho.
Falei com a vizinha M sobre o assunto. Gosto muito de falar com ela. Põe a funcionar um mecanismo idêntico ao de alguns insetos, vê o fundo das coisas e vê-as de todos os lados, o que às vezes resulta em conclusões mirabolantes.
A primeira ideia da vizinha é que não se fala de amor.
- Não?
- Porquê?
- É uma coisa que às vezes corre mal. Olha, se os namorados, quando estão juntos, levam a vida a mentir, mostrando um ao outro aquilo que não são, imagina por carta!
- Mas eu acredito no amor. E mais: acredito que tudo é com aquela pessoa, só com aquela pessoa, sem saber do que se trata – sem saber no fundo, o que se quer para além de se desejar estar com ela. O amor é uma coisa instantânea. Não se escolhe. Acontece.
-Uma coisa instantânea? Fica a saber que aquilo a que chamas “instantânea” é apenas uma intrujice da natureza. É por essas e por outras que andamos todos iludidos. A mim, ninguém me convence que o homem e a mulher foram feitos para viverem juntos.
- Isso é demasiado esquisito para ser verdade. De certeza que a natureza nunca faria uma coisa dessas. É Julho. É Verão. E é bom pensar na alegria de não estarmos sozinhos. É bom saber que há alguém querido na nossa vida, que passa de tão mínimo a tão máximo. Isso é magia, não é intrujice.
- Pois. O melhor é acabarmos com a conversa, sabe-se lá onde nos pode levar. Voltando à tua dúvida sobre o que se escreve a um afilhado de guerra. Chega-se à amizade e isso é tudo. Vive-se um sentimento mais atinado e tranquilo. Sim, porque os militares em África não estão de férias. Vêm de lá com feridas na alma. Nem te passa pela cabeça por aquilo que passam!
A, transcrevo esta conversa, para te dizer que foi a vizinha M que me convenceu a fazer parte do teu séquito de madrinhas de guerra. E não me sinto de modo nenhum envergonhada por ter mudado de ideias. Às vezes, o mais difícil, na vida, é sabermos quais as pontes a atravessar e quais as que não podemos cruzar.
Pela minha parte, apesar de acreditar nas estrelas do meio-dia, vou seguir os conselhos da vizinha. Tu contas-me: o quanto te custa estar na guerra; as tuas experiências de vida aí no Dange; o que fazes no teu dia a dia; o como ocupas os teus tempos livres; as tuas preferências acerca de músicas, de filmes, de livros ou acerca de outra coisa qualquer… E eu devo apoiar-te moralmente. Assim, vou falar-te de nuvens, de constelações, de utopias, de sonhos, de voos de pássaros, enfim, de coisas leves que confortam. Também posso falar-te de futebol. Não percebo nada disso, mas o vizinho Zé, o marido da vizinha M, dá-me umas dicas.
Esta carta já vai longa.É tempo de a terminar. Não me despeço de ti, pois gostava de acreditar na ideia bonita de que entre afilhado e madrinha de guerra não há despedidas, apenas um intervalo até à próxima carta.
Leonor Santos