quarta-feira, 20 de novembro de 2024

UMA CARTA PARA TI

Monte Branco, 20 de Novembro de 1969

A.

Foto: Sally Mann

Estamos em Novembro. Por aqui já se vê o trabalho do Outono: os pássaros mudaram o seu canto, as árvores mostram-se cobertas de tons amarelos e deixam as suas folhas secas voarem ou adormecerem no chão e os ninhos estão agora vazios.

A propósito, lembro-me de um dia de domingo com sol e poças de água a brilhar por todos os lados. Eu ia para a cidade, tu vinhas da cidade. Atiraste uma pedra para uma das poças. Parei e vi o distúrbio que a pedra causou ao entrar na água. A pedra encontrou o seu lugar. Mas a poça nunca mais ficou a mesma.

Há coisas que se alteraram no decurso da nossa correspondência. Coisas que eu não entendo. Não sei – chega-se a um ponto em que a gente já não sabe nada. Mas não é verdade o que tu dizes, quando insinuas que já te esqueci. Sempre que não penso noutra coisa, penso em ti.

Quando te vi partir para Angola, custou-me muito. Doeu-me verdadeiramente. Senti que ia ficar para trás, como uma daquelas meias que a minha mãe guarda no fundo de um cesto. Meias desacertadas à espera do respetivo par. Tenho-me esforçado por investigar o paradeiro de cada uma das meias desaparecidas, que, num golpe de asa, partiram sem deixar rasto. Há um mistério qualquer na fuga dessas meias. Em que lugar da Terra se terão escondido?

Na tua última carta, dizes-me isto: “se não me escreves porque andas a fazer olhinhos a algum maljeitoso, lembra-te que és minha namoradinha”. Estas palavras chegaram, saltaram, rebolaram, fizeram ricochete e caíram em mim como um torvelinho. O mais espantoso é que foste tu que me disseste que, enquanto estivesses em Angola, não tinhas pressa nenhuma em ires ao encontro de Vénus e de Saturno. E que havia coisas na tua vida que se calhar iam ficar entre parêntesis, para não doerem tanto.

Na altura não estranhei o que me disseste. E procurei transformar certas lembranças em universos brancos e distantes. Agora, não sei como, nem porquê e nem quando passei a ser tua “namoradinha”. Também não sei porque usas o lado mais traquinas da palavra “namoradinha”. Seja como for, as palavras não são neutras nas suas implicações, e, assim, esse diminutivo soa-me como um namoro em miniatura. No fundo, um namoro pequenino porque não queres que seja grande. Diz-me, ajuda, se é que podes, se o limite são rosas, conchas ou pássaros…

Leonor