sexta-feira, 13 de julho de 2018

O valado... e o desgosto

(A importância das pedras, nas brincadeiras na vida rural, dos anos 50)

Em frente à minha casa em Torre e Cercas, havia uma enorme alfarrobeira, talvez não fosse tão enorme, o meu tamanho é que determinaria essa apreciação. Na  sombra dessa alfarrobeira, entre os 3 e os 7 anos, foi o local de preferência para as minhas brincadeiras: uma arrioça (baloiço) constituída por duas cordas, uma tábua, pendurada num tronco da alfarrobeira; a minha cadela "patusca" que fazia de burro e me acompanhava para todo o lado, e levantava-me quando eu caía; uma cana ou uma vara comprida com um pau em cruz que era a minha bicicleta e outros brinquedos que o meu pai ajudava a fazer, melhor dizendo fazia (arades em miniatura de troncos de figueiras, piões de  troncos de árvore (da oliveira eram os melhores), com um prego limado na ponta; berlindes de vidro ou na falta deles, umas pedrinhas esféricas que os substituía, ratoeiras, isto mais tarde, etc...) e as inevitáveis pedras que davam para tudo.

Tronco de árvore com a "arrioça" (baloiço)

A memória da "estória" que vou contar, trata precisamente, de uma brincadeira com pedras. O meu pai para além de agricultor era também pedreiro, antes de trabalhar na construção de habitações, passou pela construção de valados que  serviam para delimitar algumas propriedades.

Valado para delimitar propriedades

Um dia, teria eu 3 ou 4 anos, o meu pai ofereceu-se para construir um valado em miniatura debaixo da alfarrobeira, depois de construído passou a ser para mim a melhor coisa do mundo, nessa altura disse-me "agora continuas a fazer o valado para ficar maior", eu ia pondo pedras sobre pedras, mas a minha construção não tinha nada a ver com a parte inicial feita pelo meu pai, mesmo assim parecia-me bem e levava ali os dias com aquela brincadeira.

Passados alguns dias, seria domingo, porque o meu pai estava em casa. Chegou a hora do almoço e a minha mãe começou a chamar-me para almoçar, eu nem respondia e ao fim de algum tempo, foi o meu pai que me chamava, com o mesmo resultado: nesse momento, ele foi até onde eu estava a brincar e ameaçou, com ar agressivo: "ou vens comer já, ou eu deito esta "porcaria ao chão"; eu continuei impávido e sereno; perante a minha indiferença, o meu pai cumpriu a promessa e destruiu o valado; nisto acordei e "desato" num choro compulsivo que até sufocava por vezes; o meu pai ficou preocupado e para me acalmar, disse-me "deixa lá, eu depois faço outro"; mas eu continuava inconsolável e dizia entre soluços "quero agora"; o meu pai que era irredutível nestas ameaças, tal era o cenário, que acedeu e reconstruí o valado naquele momento ..., depois, fomos almoçar, eu pela mão do meu pai, mas ainda soluçando até chegar à mesa. Foi um daqueles desgostos, como se o mundo fosse acabar, mas acabou tudo em bem ...

F. Santos - Memórias de infância
8 de julho de 2018

2 comentários:

  1. Interessantissimo essa abordagem, onde a descrita infancia, com caracteristicas peculiares em todos nós, molda energeticamente os nossos horizontes, a nossa agudizada visão da simplicidade misto de inocência e curiosidade. Que venham mais muros! Sabe-lo-emos construir ou contornar. Parabéns

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    1. Obrigado António! Claro que na nossa vida sempre soubemos construir os nossos muros e ultrapassar ou contornar os que nos surgiam pela frente... Um abraço!

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