domingo, 1 de novembro de 2020

Memórias da pesca no rio Arade com o Tóino Torres

 Homenagem a um amigo que já partiu

 
 
António dos Santos Águas (Tóino Torres): a 1ª foto com ar de desafio e a 2ª pensativo e observador

Há amizades que se fazem para a vida: não têm idade, simpatizamos com pessoas que passam por nós, convivemos e gostamos de estar com elas. Estas amizades nunca se esquecem. Como costumo dizer: “são amizades que o tempo e a distância nunca apagarão”. Como as define Vinicius de Moraes numa passagem do seu pensamento: “Mesmo que as pessoas mudem e suas vidas se reorganizem, os amigos devem ser amigos para sempre, […] compartilhar as mesmas recordações. Pois boas lembranças, são marcantes, e o que é marcante nunca se esquece! Uma grande amizade mesmo com o passar do tempo é cultivada assim!”.

Aos 11 anos deixei a Charneca de Torre e Cercas e aterrei no Monte Branco. Os meus pais decidiram mudar-se com toda a família, incluindo a minha avó materna, para esta aldeia, situada entre a serra e o castelo de Silves, a uma curta distância da cidade, para ficarmos mais próximo da Escola Industrial e Comercial de Silves, onde eu iria continuar os estudos. Fiz aqui muitos amigos, tanto na escola, como na aldeia.

Nestas memórias vou recordar um amigo, especial, dos tempos da minha adolescência e juventude. Uma amizade que não se enquadra dentro daquilo que poderíamos chamar de natural. Este amigo tinha mais 14 anos do que eu, quase o dobro da minha idade.

Já não me recordo bem, mas quando teria 14 ou 15 anos, foram morar para a aldeia, um casal: António dos Santos Águas (Tóino Torres) e a esposa, Vizinha Luísa, com duas filhas, a Isabel e a Tina. Alguns anos depois esta família aumentou com o nascimento de mais dois filhos, um menino, o Toino e uma menina, a Paula. Com a vinda deste amigo, para a aldeia, nasceu entre nós uma grande amizade, cada um defendendo o seu clube, ele do Benfica e eu do Sporting: discutíamos o mérito e os azares dos nossos clubes; preenchíamos os boletins do totobola (nessa época as únicas apostas da Santa Casa), ele tinha uma fé inabalável que um dia iria ficar rico, acertando todos os resultados do boletim; jogávamos à bola no largo com outros amigos e conversávamos à mesa numa pequena cozinha anexa à casa onde morava.

Percorríamos as margens do rio Arade desde a Praça até à Ilha da Nossa Senhora do Rosário, a pé ou de motorizada, que ele usava, diariamente, para se deslocar para o trabalho, com o objetivo de vislumbrarmos algum cardume. O Tóino Torres era pedreiro de profissão, tal como o meu pai, com quem mantinha boas relações. O sogro o Ti Matias, também veio residir para a aldeia, trabalhava no rebentamento de pedreiras.

 
Ilha da Nossa Senhora do Rosário - Silves

 O Tóino Torres era um apaixonado pela pesca (raramente pescávamos à linha com cana de pesca): pescávamos enxarrocos (nome mais usado no Algarve, mas que também é designado noutras regiões do país como xarrocos ou charrocos); caranguejos; robalos; tainhas ou liças; camarões (pouco vezes) e enguias. Na pesca do enxarroco ele conhecia todos os buracos das rochas da ilha da Nossa Senhora do Rosário, no Rio Arade. Colocávamos, ainda, algumas telhas no fundo do rio para estes peixes ali se esconderem e mais tarde os recolhermos.

 
Margem do rio Arade junto à Rocha Branca, com o canal de via reduzida ao lado

 Outra das vertentes da pesca, esta com artes proibidas, era o rebentamento de cartuchos de dinamite no pego onde encontrávamos cardumes (robalos e tainhas ou liças). Para conseguir o material de rebentamento, a sua atividade como pedreiro e a do Ti Matias, seu sogro (que ele chamava de “compadre”), davam uma ajuda, porque tinham à sua guarda material pirotécnico. Para estas artes da pesca era necessário: cartucho de dinamite, escorva, uma pedra a servir de chumbada para deslocar a bomba para o fundo, uma pequena mecha (só do tamanho suficiente para descer até ao meio, entre o fundo e da superfície do pego) e fósforos ou isqueiro.

Margem do rio Arade (local, mais ou menos, onde fizemos este rebentamento)

Um dia ao percorrermos as margens do rio Arade, um pouco abaixo onde, hoje, se situa o parque de estacionamento, deparámo-nos com um grande cardume. Não nos fizemos rogados, preparámos tudo e fizemos o lançamento da “bomba”, não sobre o cardume, mas um pouco ao lado, para não destruir o peixe. O rebentamento fez centenas de vítimas entre esta “população” piscícola, que nessa manhã ali se tinha juntado para o repasto matinal. De imediato, começámos a recolha: mergulhávamos eu com uma saca de ráfia aberta e ele a recolher o peixe e colocá-lo na saca. Era muita pescaria, mergulhávamos muitas vezes. Em cada mergulho estávamos debaixo de água até termos folgo. A determinada altura aproxima-se do local um sujeito, que reconhecemos de imediato: era, nem mais nem menos, o guarda do rio. Diz-me o Tóino Torres: “estamos tramados, vem ali o guarda do rio…”, mesmo assim continuamos a recolha, porque não havia forma de evitar aquele indesejado encontro. O guarda do rio chega junto da margem e para nosso espanto, a reação não foi de hostilidade, observou os nossos mergulhos e de seguida, depois de nos dar o “bom dia”, a que nós correspondemos, comentou: “bom peixe! Mas vocês rebentam os ouvidos a mergulhar”, e continuou: “esperem um pouco que eu vou a casa e trago-vos uns tampões…”. O guarda do rio, não só regressou com os prometidos tampões, mas também, com um enorme balde, que levou para casa cheio de peixe. Esta personagem morava na Cerca da Feira a uma pequena distância de onde nos encontrávamos. Talvez por isso tenha ouvido o estrondo do rebentamento.

Neste rebentamento matámos mais peixe do que seria necessário. O Tóino Torres foi várias vezes a casa para transportá-lo de motorizada. Nestas ocasiões havia sempre fartura em toda a aldeia (distribuição gratuita e festa na rua). Fizemos muitos outros rebentamentos, não com tanto peixe, nem com a presença do guarda do rio… era sempre uma festa quando pescávamos e ninguém ficava sem um pouco peixe! Só hoje consigo, com clareza, entender o sentido comunitário desde amigo!

Depois de sair do Monte Branco para cumprir o serviço militar, a família do Tóino Torres foi residir para Armação de Pera. No início da década de 70 do século passado, rumei para a região de Lisboa, onde fiz quase toda a minha vida pessoal e profissional. Depois disso, encontrámo-nos poucas vezes, o que lamento, sempre em Armação de Pera

F. Santos – Memórias de Juventude

30 de outubro de 2020

 PS. Dedico este texto aos filhos: Isabel, Tina, Tóino e Paula.

 
O Tóino Torres com a família no casamento da Isabel

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