sábado, 21 de dezembro de 2024

Numa tarde qualquer de dezembro

imagem de Catrin Welz-Stein

Numa tarde qualquer de dezembro, estava eu muito sossegadinha, em casa, quando ouvi bater à porta. Eras tu. Perguntaste-me sem peneiras:  “Fazes anos hoje, não fazes?”. Mas não, não fazia. Não me trouxeste flores, nem uma caixa de bombons. Deves ter achado isso uma coisa foleira. Tiraste do bolso umas letras às cores. Primeiro um A, o primeiro da palavra A+M+A+R. A seguir um M, o único de amar. Depois outro A. O segundo de Amar. E por fim o R, o R do fim de amar. Este gesto pareceu-me equivalente ao que se passa no domínio dos sonhos: tudo o que é imaginável, dizem, pode ser sonhado, mas isto nem em sonhos me tinha passado pela cabeça. Numa penada, todo o enigma ficou transparente para o olhar como uma libelinha. Em silêncio, olhava-te muito nos olhos, especada de espanto. Nisto chegou a minha mãe e tu voaste dali para fora e as letras voaram contigo.

Éramos adolescentes e não tínhamos qualquer história. Além disso, na minha geometria sobre o Amor, eu era uma pessoa impreparada para amar. Por isso, aquilo, para mim, teve um carácter de novidade tão grande que me pareceu uma cena saída de um filme de ficção científica.

O que te posso dizer é que aquele teatro que fizeste à minha porta “mexeu comigo”. Fiquei convencida de que estávamos unidos por uma paixão súbita, única e secreta. Essa certeza era bela, mas o que fizeste aproximou-nos e afastou-nos, tudo ao mesmo tempo: passei a evitar cruzar-me contigo e tu, durante muito tempo, não trocaste uma única palavra comigo. Daí que a incerteza de tudo fosse ainda mais bela.

 Leonor

quarta-feira, 20 de novembro de 2024

UMA CARTA PARA TI

Monte Branco, 20 de Novembro de 1969

A.

Foto: Sally Mann

Estamos em Novembro. Por aqui já se vê o trabalho do Outono: os pássaros mudaram o seu canto, as árvores mostram-se cobertas de tons amarelos e deixam as suas folhas secas voarem ou adormecerem no chão e os ninhos estão agora vazios.

A propósito, lembro-me de um dia de domingo com sol e poças de água a brilhar por todos os lados. Eu ia para a cidade, tu vinhas da cidade. Atiraste uma pedra para uma das poças. Parei e vi o distúrbio que a pedra causou ao entrar na água. A pedra encontrou o seu lugar. Mas a poça nunca mais ficou a mesma.

Há coisas que se alteraram no decurso da nossa correspondência. Coisas que eu não entendo. Não sei – chega-se a um ponto em que a gente já não sabe nada. Mas não é verdade o que tu dizes, quando insinuas que já te esqueci. Sempre que não penso noutra coisa, penso em ti.

Quando te vi partir para Angola, custou-me muito. Doeu-me verdadeiramente. Senti que ia ficar para trás, como uma daquelas meias que a minha mãe guarda no fundo de um cesto. Meias desacertadas à espera do respetivo par. Tenho-me esforçado por investigar o paradeiro de cada uma das meias desaparecidas, que, num golpe de asa, partiram sem deixar rasto. Há um mistério qualquer na fuga dessas meias. Em que lugar da Terra se terão escondido?

Na tua última carta, dizes-me isto: “se não me escreves porque andas a fazer olhinhos a algum maljeitoso, lembra-te que és minha namoradinha”. Estas palavras chegaram, saltaram, rebolaram, fizeram ricochete e caíram em mim como um torvelinho. O mais espantoso é que foste tu que me disseste que, enquanto estivesses em Angola, não tinhas pressa nenhuma em ires ao encontro de Vénus e de Saturno. E que havia coisas na tua vida que se calhar iam ficar entre parêntesis, para não doerem tanto.

Na altura não estranhei o que me disseste. E procurei transformar certas lembranças em universos brancos e distantes. Agora, não sei como, nem porquê e nem quando passei a ser tua “namoradinha”. Também não sei porque usas o lado mais traquinas da palavra “namoradinha”. Seja como for, as palavras não são neutras nas suas implicações, e, assim, esse diminutivo soa-me como um namoro em miniatura. No fundo, um namoro pequenino porque não queres que seja grande. Diz-me, ajuda, se é que podes, se o limite são rosas, conchas ou pássaros…

Leonor

 

terça-feira, 6 de agosto de 2024

Uma carta inesperada

 

Emmanuel Sougez

Monte Branco, domingo, 27 de Julho,1969

A.

Olá. O carteiro entregou-me agora mesmo uma carta tua. E nela não encontro os pontos cardeais que compõem uma carta para uma madrinha de guerra. Afinal de que se fala quando se escreve uma carta dessas? É uma dúvida que tenho.

Falei com a vizinha M sobre o assunto. Gosto muito de falar com ela. Põe a funcionar um mecanismo idêntico ao de alguns insetos, vê o fundo das coisas e vê-as de todos os lados, o que às vezes resulta em conclusões mirabolantes.

A primeira ideia da vizinha é que não se fala de amor.

- Não?

- Porquê?

- É uma coisa que às vezes corre mal. Olha, se os namorados, quando estão juntos, levam a vida a mentir, mostrando um ao outro aquilo que não são, imagina por carta!

- Mas eu acredito no amor. E mais: acredito que tudo é com aquela pessoa, só com aquela pessoa, sem saber do que se trata – sem saber no fundo, o que se quer para além de se desejar estar com ela. O amor é uma coisa instantânea. Não se escolhe. Acontece.

-Uma coisa instantânea? Fica a saber que aquilo a que chamas “instantânea” é apenas uma intrujice da natureza. É por essas e por outras que andamos todos iludidos. A mim, ninguém me convence que o homem e a mulher foram feitos para viverem juntos.

- Isso é demasiado esquisito para ser verdade. De certeza que a natureza nunca faria uma coisa dessas. É Julho. É Verão. E é bom pensar na alegria de não estarmos sozinhos. É bom saber que há alguém querido na nossa vida, que passa de tão mínimo a tão máximo. Isso é magia, não é intrujice. 

- Pois. O melhor é acabarmos com a conversa, sabe-se lá onde nos pode levar. Voltando à tua dúvida sobre o que se escreve a um afilhado de guerra. Chega-se à amizade e isso é tudo. Vive-se um sentimento mais atinado e tranquilo. Sim, porque os militares em África não estão de férias. Vêm de lá com feridas na alma. Nem te passa pela cabeça por aquilo que passam!

A, transcrevo esta conversa, para te dizer que foi a vizinha M que me convenceu a fazer parte do teu séquito de madrinhas de guerra. E não me sinto de modo nenhum envergonhada por ter mudado de ideias. Às vezes, o mais difícil, na vida, é sabermos quais as pontes a atravessar e quais as que não podemos cruzar.

Pela minha parte, apesar de acreditar nas estrelas do meio-dia, vou seguir os conselhos da vizinha. Tu contas-me: o quanto te custa estar na guerra; as tuas experiências de vida aí no Dange; o que fazes no teu dia a dia; o como ocupas os teus tempos livres; as tuas preferências acerca de músicas, de filmes, de livros ou acerca de outra coisa qualquer… E eu devo apoiar-te moralmente. Assim, vou falar-te de nuvens, de constelações, de utopias, de sonhos, de voos de pássaros, enfim, de coisas leves que confortam. Também posso falar-te de futebol. Não percebo nada disso, mas o vizinho Zé, o marido da vizinha M, dá-me umas dicas.

Esta carta já vai longa.É tempo de a terminar. Não me despeço de ti, pois gostava de acreditar na ideia bonita de que entre afilhado e madrinha de guerra não há despedidas, apenas um intervalo até à próxima carta. 

Leonor Santos