Fevereiro de 1971, um mês para “esquecer ou… para lembrar” …
Lucusse: o
comandante a dirigir as obras (faltam-lhe os galões) |
Quando relembramos os tempos
vividos na guerra colonial, a maioria dos camaradas que regressaram, apenas recordam:
o “patriotismo”; o “cumprimento do dever”; a “defesa da bandeira”; os “heróis”;
a “disciplina”; as “condecorações” (diplomas e medalhas); os “camaradas
abandonados” numa qualquer campa em África; o “esquecimento” das gerações
seguintes e dos governantes … Neste testemunho vou sair deste registo e escrever
sobre aquilo que a maioria considera ou tem como um tabu, os “castigos”: que
terão sido em maior número do que as “condecorações”.
É à volta dos “castigos” que vou
desenvolver este tema, começando por perguntar: não terá sido um “castigo”
termos sido obrigados a entrar nesta guerra? Não terá sido um “castigo” o nosso
batalhão (B.Caç. 2872) ter sido desterrado para o Leste, quando pensávamos que
ficaríamos o resto da comissão no Grafanil (embora com as várias operações e
escoltas aos MVL para o norte, zona perigosa e propícia a emboscadas)? Não terá
sido um “castigo” sermos despejados à porta dum quartel qualquer depois de
terminada a comissão? Mas não é sobre estes “castigos” que me irei debruçar.
Da ida para o Leste, já escrevi num
testemunho: “A
caminhada até Cangumbe, Canage, Lucusse e Lungué-Bungo”. Nessa caminhada,
depois de passar por Cangumbe, com todas as peripécias até chegarmos ao Canage,
acampamento onde passámos bons tempos, mas também com alguns contratempos,
seguiu-se o gozo das únicas férias durante a comissão. Férias passadas em
Luanda onde assisti à passagem do ano velho para o ano novo. Quando estávamos
no Canage, devido ao avanço dos trabalhos na estrada entre o Luso e Gago
Coutinho, onde fazíamos a proteção próxima e afastada à construção e
alargamento desta estrada, tivemos de avançar para o Lucusse, abandonando e
deixando para trás este acampamento. É no Lucusse, onde se encontrava a sede do
Batalhão, com a CCS e outra companhia operacional, a C.Caç. 2504, durante um período mais ou menos de um mês,
que tivemos a nossa base até sairmos para o Lungué-bungo, que se desenrola este
testemunho.
Num dia, onde não tinha intenção
de sair da tenda, depois de na véspera ter preparado tudo para que assim
acontecesse, devido a uma grande dor de dentes com abcesso e cara inchada, não
digo que não conseguisse suportar as dores, mas causavam-me grande mau estar. Estava,
então, deitado quando chega alguém da minha companhia à tenda e diz-me: “meu
furriel, o nosso primeiro disse para ir à secretaria”. De imediato dirigiu-me
para a secretaria, quase como me tinha levantado: chinelos; calções e camisa
(provavelmente mal abotoada). Cheguei à secretaria e dirigiu-me ao 1º sargento:
“Oh Reis, o que se passa?” Ao que ele balbuciou: “cumprimenta o nosso major!”;
olhei para trás e estava sentado numa cadeira ao fundo o 2º comandante do
batalhão; cumprimentei-o, talvez duma forma não muito regulamentar (na punição
vem que: “manteve uma atitude de indiferença e continuando com a mão no bolso” -
não posso afirmar que não terá acontecido assim… - O segundo comandante estava
ali numa missão de fiscalização administrativa ao armazém de géneros da
companhia -. Depois, em diálogo cordial, dirigimo-nos para o armazém. Tinha a
ideia e ainda hoje penso assim: era um oficial que não gostava de conflitos, no
entanto, teria algum complexo de poder. No armazém facilitei-lhe tudo o que me
pediu (ordenou). Conferiu os géneros em armazém (até “pediu” que pesasse alguns),
com as fichas de existência. No final ficou agradado com a visita e deu-me os
parabéns pela organização. Acompanhei-o à porta e despedimo-nos. Provavelmente
esperaria um pedido de desculpas…
Surpresa: ao princípio da noite, sou chamado ao gabinete do comandante. Mal entro, vejo este senhor todo recostado num cadeirão com as pernas em cima duma cadeira e com ar autoritário, atira-me: “então não cumprimentou o nosso 2º comandante como era devido?” Tentei explicar, mas não consegui expressar a minha versão dos factos, porque mal comecei, recebi logo uma ordem: “ponha-se lá fora!”. De seguida dirigiu-me para a enfermaria. Na enfermaria encontrei o meu camarada, furriel enfermeiro, que me adiantou logo: “eh pá, não te posso mandar a uma consulta no Luso porque já saiu na ordem de serviço a tua punição”. Nem sei bem o que terei ido fazer ao gabinete do comandante, porque nem só não me informou da punição, nem me ouviu, como já tinha redigido e publicado a mesma. Fui contemplado com 10 DIAS DE PRISÃO DISCIPLINAR. Talvez este “castigo” tenha sido agravado pelos acontecimentos de 2 semanas antes, quando me recusei a ordenar a venda de cervejas no período de balanço do bar da companhia (referi na altura ao oficial que me deu a ordem que existiam mais 2 bares nesse aquartelamento, um da CCS e outro da C. Caç 2504, onde podiam comprar cerveja fresca, o que não era o caso na nossa companhia). A minha recusa antes do balanço tinha a ver com o cumprimento do que tinha sido decidido pelo comandante de companhia, ausente neste dia, pois não queríamos problemas com défices como já tinha acontecido no Dange, período em que estive afastado, testemunho que já dei conta em: “Vagomestre “promovido” a comandante da Secção de Armas Pesadas!”. Este episódio da venda de cervejas valeu-me 5 DIAS DE DETENÇÃO.
Estas punições relegaram-me para a “4ª classe de comportamento”, o que não fez grande diferença na minha vida pessoal e profissional. De qualquer modo foi sempre um assunto que não digeri muito bem, pois, sempre tive a convicção, que não cometi nenhum “crime”, não “lesei”, nem faltei ao “respeito” a ninguém. Enfim era esta a “pedagogia” usada nesta guerra ou melhor, na minha guerra…
Extrato da caderneta
militar |
F. Santos – Memórias de Angola
15 de novembro de 2020
Ps: posso estar errado, mas todas estas punições teriam a ver com o mau relacionamento entre o comandante de batalhão e o comandante da minha companhia. Nas confraternizações de graduados, que periodicamente se realizaram, o comandante da minha companhia recusava-se a estar presente quando o comandante do batalhão lá estivesse.
Publiquei em tempos uma sátira baseada num facto real, onde houve um possível desentendimento entre os dois: Cronologia do assalto!
FS