"As 'barragens' e as molhas"
Durante a instrução primária, nos primeiros meses de
aulas, de meados de outubro a meados de março, era raro o dia em que não
chovia, por vezes torrencialmente.
Nesses dias as molhas eram constantes, muitas vezes
duas por dia, antes e depois de entrar na sala. Não me lembro de alguma vez ter
usado chapéu de chuva ou capa impermeável, até porque isso me inibiria nas
brincadeiras. Enxugávamos a roupa no corpo durante o dia.
Um
barranco com água da chuva
Na 1ª
classe a minha mãe tinha-me comprado uma mala castanha de papelão, com reforço metálico,
dobradiças e fecho de pressão. Esta mala destinava-se a transportar os livros,
cadernos e restante material escolar. Eu gostava muito desta mala, era uma mala
bonita e de alguma maneira fazia inveja aos colegas que não a tinham.
Mala
de papelão com reforço metálico
Passado algum tempo, num dia em que choveu muito, eu
e alguns amigos, num dos caminhos em direção à minha casa, com um barranco ao
lado, decidimos aí construir uma barragem. Coloquei a mala ao lado do caminho,
junto duma árvore e mãos à obra: pedras, troncos, barro vermelho e tudo o que
havia para estancar e criar uma bacia de água naquela charneca. Durante a
construção não conseguimos evitar alguns rebentamentos, o que prolongou no
tempo os trabalhos, mas sempre fomos conseguindo estancar a saída da água, até
que ficou terminada.
Quando nos preparávamos para contemplar a nossa obra,
a chuva começou a cair com redobrada intensidade. Estávamos à espera que a
barragem enchesse ainda mais, transbordasse, rebentasse e provocasse um grande
cheia, com inundação. Nisto lembrei-me
da mala e fui buscá-la. Nesse momento, aconteceu o que nunca tinha imaginado,
ao agarrar na parte do cartão, começou a desfazer-se e em pouco tempo fiquei com
pouco mais do que a parte metálica nas mãos. Ainda assim, consegui salvar os
livros e cadernos, mesmo molhados e o resto do material. A barragem rebentou
mas não deu para fazer a festa, ou pelo menos eu não a fiz.
Ao chegar a casa, com algum receio do que poderia
acontecer devido ao desastre, fiquei encolhido, quando fui confrontado pelo meu
pai, contei a "estória" à minha maneira, omiti por completo a azáfama
com a barragem. Desta saí ileso e aliviado, houve compreensão pelo sucedido e a
chuva acabou por arcar com todas as culpas.
Havia que salvar o que restava, livros e cadernos, já
que o restante material: pedra, lápis, borracha e lápis de pedra, eram à prova
de água. A minha mãe colocou os livros e cadernos que estavam molhados em cima
duma mesa e passou-os com um ferro de engomar, que aquecia com brasas. Ficaram
razoavelmente direitos e utilizáveis sem qualquer problema, a não ser uma
pequena sujidade com as marcas da água.
Depois do "acidente" necessitava de ter
alguma coisa para transportar o material, então, novamente, a minha mãe, a
gestora lá de casa, comprou ganga azul que normalmente servia para fazer as
calças dos homens que trabalhavam na agricultura. A minha avó, a artesã da família,
fez uma bolsa (não tão bonita como a da imagem), para levar a tiracolo, que eu detestava
antes, mas dadas as circunstâncias até fiquei "feliz".
Bolsa
de ganga azul
F. Santos - Memórias de infância
11 de junho de 2018