Quando entrei para a escola primária, era tudo novo
para mim, a sala de aulas, o recreio, os colegas e as brincadeiras. Nos
primeiros dias observava tudo o que se passava ao meu redor e verifiquei que as
meninas não brincavam com os meninos das classes mais adiantadas, por sua vez
os meninos mais novos nem sempre eram admitidos nas brincadeiras dos maiores e
então restava-lhes brincar com os da sua idade ou com as meninas, quando estas
os admitiam. Era esta a ordem estabelecida.
A luta
pelo controlo do recreio
Nestes primeiros tempos de escola, o controlo do
recreio ainda não tinha sido conquistado, havia dois colegas que lutavam por
esse controlo, o Joaquim Sequeira Martins, que morava para nascente da área de
Torre e Cercas e o Manuel Felícia que morava nos Queimados. A luta era
tremenda, nos intervalos das aulas não se fazia sentir muito, mas no final do
dia quando as aulas terminavam, quase sempre havia luta, algumas vezes, corpo a
corpo, rolando pelo chão: numa ocasião, os dois foram rolando até uma rima de
estevas que eram utilizadas para aquecer o forno da padaria; nesse lugar estava
presa uma mula ou um macho; a certa altura ficaram por debaixo da barriga do
animal que ia mexendo as pernas para não os pisar, até arrepiava;
dessa vez acabou bem; noutras ocasiões desencadeava-se uma guerra de pedras
entre os dois. Raras eram as vezes em que no dia seguinte não eram contemplados
com o sabor da régua da professora.
Foi nesta segunda vertente da luta que aconteceu a
minha "estória": depois de terminadas as aulas, desencadeou-se a guerra
de pedras; o Joaquim Sequeira ia recuando e já estava no caminho que dava para
o regresso a casa; o Manuel Felícia ia avançando; os assistentes, onde eu me incluía,
ficaram na retaguarda, junto a uma parede que existia naquele lugar; eu ao
passar junto a essa parede, por de trás do Manel, fui atingido no sobrolho, com
uma pedrada atirada pelo Joaquim.
Fiquei a sangrar, rapidamente o sangue cobriu-me o
rosto, passou-me para as mãos e para a roupa, na tentativa de o limpar e
chorava ao mesmo tempo. Não me recordo quem me conduziu à
"enfermaria" (casa da professora), mas quando lá cheguei ela perguntou-me:
"Fernando! Quem te fez isso?"; eu chorava e entre soluços respondi:
"na sei professora". Eu sabia quem tinha sido, mas se por um lado não
gostava de denunciar o colega que morava para a minha zona e também tinha medo
das represálias, por outro lado não podia dizer que era o Manel, porque não era
verdade e também não queria falar sobre esta luta pelo "poder". Entretanto,
alguém terá contado à professora o que se passou nessa tarde, porque no dia
seguinte a régua "trabalhou" bastante!!! Esta luta só terminou quando o Joaquim Sequeira Martins terminou a 4ª classe.
Depois do curativo, feito pela própria professora (hoje resta, apenas, uma pequena marca, ainda bem visível, no sobrolho esquerdo), não brinquei pelo caminho,
nem segui os percursos normais. A professora mandou chamar o meu pai,
que trabalhava ali numa horta perto, que me veio buscar. Fui com ele para a
horta e regressei a casa no fim do dia, já noite.
F. Santos - Memórias de infância
13 de agosto de 2018