quarta-feira, 8 de maio de 2024

A primeira carta

Quadro de Pierre Mignard

É uma terça-feira, do mês de Junho de 1969. O dia chegou ao seu limite no Monte Branco, e o céu está em tons rosa. O Sol dirige-se agora para terras lá longe do meu horizonte. Olho o castelo e reparo que há certas partes das muralhas que ainda estão iluminadas pelos últimos raios solares.

É claro que tudo isto não tem importância nenhuma. O que não me sai da cabeça é o que me dizes na tua primeira carta. Tu, o que veio a minha casa com um salvo-conduto nos olhos, a dizer: “ne me quitte pas”. Tu, o que agora me diz: tenho X madrinhas de guerra a quem escrevo cartas. Eu que imaginei passar à máquina as tuas cartas, ouvir contigo discos de 33 rotações, rir-me das tuas parvoíces, ficar séria quando contas piadas, só para te ver atrapalhado, conhecer-te, eu que não consigo conhecer-me a mim própria. Eu que imaginei ensinar-te todas as cores do arco-íris como se fosses daltónico, para perceberes que a vida não é a preto e branco.  Eu que sonhei dizer-te pela linha das estrelas: tu não és só tu.  Tu és o ar que brilha à minha volta.

A propósito do “ne me quitte pas”, ouviste a canção? Como é que se pode levar a sério alguém que oferece “pérolas de chuva/vindas de um país/onde não chove?” E como é que se está disposto a tudo, a tudo mesmo, só para que a outra pessoa não nos abandone? O que também é terrível é não saber por que motivo o amor de Ana Karenina e Vronski terminou num ápice, depois do primeiro encontro às escuras. Por outro lado, como compreender que uma mulher ame, ao longo de uma vida, um marido difícil, como a vizinha Y. Tudo isto é muito confuso. O amor pode ser muita coisa. Pode mudar segundo o humor. E também pode correr mal. Mas a regra da sua duração é o que me intriga mais. É que não há regra nenhuma. E também não há nenhuma investigação matemática sobre o assunto.

Seja como for, não devias ter escrito a carta que me escreveste e muito menos tê-la colocado no correio. Em “Para Sempre”, o Paulo não chegou a enviar para Sandra a primeira carta de amor que lhe escreveu. Deixou-a no bolso para a copiar, reler mil vezes, fazer emendas… ora o que sucede é precisamente que ele tenta evitar o equívoco, o sentimento de esparrela, o estatelar-se numa pura queda em desamparo.

A partir de agora, e ao longo da minha vida, vou evitar todos os livros, todas as músicas, todos os filmes, todas as conversas, que utilizem a palavra ”amor”.   Vou esquecer essa palavra. Vou esquecê-la até que não signifique nada, nem uma ilusão, nem uma ideia vaga, nada, absolutamente nada, zero. Porquê? Para me proteger de uma realidade que é uma desordem, um fiasco. E se um dia, por acaso, me encontrares, numa tarde de verão, na esquina de uma rua qualquer, talvez tenhas o cuidado de desviar o olhar. Talvez, assim, eu não te pergunte, como perguntou Lawrence Durrell em “O Quarteto de Alexandria”: “Sabes quem inventou o coração humano? Se sabes, diz-me o lugar onde o enforcaram.” 
Leonor Santos

3 comentários:

  1. Obrigada pela partilha deste belo texto!

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  2. Leonor Santos, o Fernando é o homem cheio de sorte.Para que não haja equívocos tenho que dizer que também sou
    Achei graça ele dizer na carta ,na altura,que teve muitas madrinhas de guerra.Provavelmente para lhe provocar ciúmes ,coisas que fazem parte de quem está enamorado.
    Eu também tive uma madrinha de guerra que apenas me serviu de conforto naqueles tempos difíceis.
    Gostei muito de ler o que escreveu.
    Um abraço aos dois e muita saúde.
    Francisco Lúcio

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