domingo, 16 de junho de 2024

Lembro-me

Foto: Terry O`Neil (1963)

Poderia, numa sucessão aparentemente descontínua e subjetiva, evocar os anos 60. Poderia inspirar-me no “Je me souviens”, de Georges Perec, que por sua vez se inspirou no “I remember” de Joe Brainard, e fazer toda uma lista de recordações iniciada por “lembro-me…”

É verdade, lembro-me como os anos 60, em muitos aspetos, foram mágicos e frenéticos por serem os que melhor traduziram as aspirações, os ideais e os sonhos de uma geração. Éramos jovens e imaginávamos que algo de novo iria acontecer. 

Lembro-me de um fenómeno chamado yé yé que marcou significativamente as nossas formas de pensar, de agir e de viver.

Lembro-me de os hippies defenderem a paz e o amor universais. Vestirem-se de um modo muito próprio e rejeitarem as normas sociais.

Lembro-me de rapazes e raparigas partilharem os mesmos gostos musicais.

Lembro-me de ouvirmos êxitos tão diversos como:

-       “Love Me do” e "Please Please Me" dos Beatles;

-       “Light My Fire" dos Doors;

-       “Let's Twist Again” de Chubby Checke;

-       “Mon amie la rose!” e “Tous les garçons et les filles de Françoise Hardy;

-       “Si je chante “de Sylvie Vartan;

-       Tudo Passará” de Neson Ned;

-       Yesterday Man, dos Sheiks;

-    “Capri Cést Fini” e “Milena”, do Conjunto Académico João Paulo…

Lembro-me também que essas músicas, em teoria, contribuíram para sentirmos que partilhávamos a mesma “cultura juvenil”, o que pressupunha regermo-nos pelo mesmo sistema de valores, pelos mesmos símbolos, mitos e imagens. Isso apagava as nossas diferenças sociais.

Lembro-me de ter sido uma devota fã dos Beatles.

Lembro-me de Brigitte Bardot ser um símbolo da “mulher liberta” que mostrava publicamente a sua vida amorosa, sem preconceitos e culpas.

Lembro-me de, aos 16 anos, ter convencido a minha mãe a comprar-me um gira-discos, para ouvir Adamo a toda a hora, numa emoção maravilhada.

 Lembro-me da canção “Datemi Un Martello” interpretada por Rita Pavone. Lembro-me dessa canção se tornar um emblema para os jovens da minha geração: o martelo era uma metáfora da mudança que tanto desejávamos. Era necessário rebelarmo-nos contra aquilo que nos incomodava: falta de liberdade individual, convenções sociais, amores não correspondidos...

Lembro-me da televisão a preto e branco.

Lembro-me das discotecas se chamarem boîtes.

Lembro-me de Marylin Monroe se ter suicidado em 62, eu é que ainda não sabia quem era Marylin.

Lembro-me de, em 1966, Madalena Iglesias ter ganho o Festival RTP da Canção, com “Ele e Ela”.

Lembro-me da “Desfolhada” no Festival da Eurovisão de 1969. E lembro-me de ter ouvido na voz de Simone de Oliveira a vibração, a frescura e a emoção de versos como estes: “Oh minha terra / minha aventura/ casca de noz / desamparada” e “Quem faz um filho, fá-lo por gosto”.

Lembro-me da canção "Je t'aime… moi non plus" de Serge Gainsbourg. Lembro-me também que esta canção criou ondas de choque nos jovens da minha geração, a ponto de nos levar a pensar que a sexualidade poderia existir para além da procriação.

Lembro-me de escutar, no Rádio Clube Português, canções de Zeca, Adriano e de Sérgio Godinho, num programa de divulgação musical, que se chamava “Em Órbita”.

Lembro-me das canções do Zeca falarem de solidariedade e de fraternidade e de protagonizarem processos de rutura e de mudança, como “Os Vampiros”, canção gravada pela primeira vez em 1963.

Lembro-me das reportagens radiofónicas do Rádio Clube Português. Lembro-me de o locutor pegar no microfone e percorrer as ruas e dar voz à realidade do dia a dia das pessoas.

Lembro-me de um programa chamado “Os Parodiantes de Lisboa - Graça com Todos”. Lembro-me de algumas personagens desse programa: o compadre alentejano, o inspetor Patilhas e o seu ajudante Ventoinha.

Lembro de anúncios publicitários criativos e divertidos que ainda hoje estão na minha memória, como por exemplo:

-       “Candeeiros bem bonitos
modernos, originais,
compre-os na Rádio Vitória,
não se preocupe mais.

-       (…)

-       "Menina, que polos conhece?

-       “O polo Norte, o polo Sul e o polilon. Polilon?!  Polilon é o fecho de correr que a mamã usa. A mamã e as outras senhoras também."

-       “Diga bom dia com Mokambo (…)”

Lembro-me de uma série de televisão “O Fugitivo” em que o protagonista era perseguido sem tréguas por um tenente obstinado.

Lembro-me de, em maio de 69, na televisão portuguesa, surgir um programa vivo num país morto: chamava-se Zip-Zip e era apresentado por Carlos Cruz, José Fialho Gouveia e Raul Solnado.

Lembro-me do filme “Bonnie e Clyde.

Lembro-me das Aventuras do Tintin.

Lembro-me de, em 1966, Mary Quant ter revolucionado o modo de vestir das miúdas da minha geração, com a criação da minissaia.

Lembro-me do aparecimento dos “collans”.

Lembro-me da alegria da desobediência, ao faltar às aulas, com as minhas amigas e colegas de turma, no dia primeiro de maio.

Lembro-me de, na escola, sermos proibidas de falarmos e de nos encontrarmos com os rapazes.

Lembro-me da euforia de ter ido pela primeira vez a um baile. E lembro-me das raparigas ficarem à espera do convite dos rapazes. E também me lembro que os rapazes às vezes levavam tampa.

Lembro-me de aos 17 anos, numa festa clandestina, dançarmos agarradinhos o ”Quand les roses” de Salvatore Adamo. E lembro-me de dançarmos, com gentileza e respeito mútuo, apesar de não existirem adultos por perto.

Lembro-me de, a partir de certa altura, começarmos a dançar sozinhos e aos saltos.

Lembro-me de viver numa aldeia sem eletricidade e sem água canalizada.

Lembro-me de alisar o cabelo com o ferro de engomar, cheio de brasas.

Lembro-me de ter visto, na televisão, Neil Alden Armstrong, pisar a Lua, no dia 20 de julho de 1969. Lembro-me também de algumas pessoas, na aldeia, pensarem que tudo aquilo era uma mentira dos americanos.

Lembro-me dos namoros, uma vez começados, manterem-se anos a fio.

Lembro-me de adorar ver filmes lamechas comoDio Come Ti Amo” de Gigliola Cinquetti, “Non son degno di te” e “In ginocchio da te” de Gianni Morandi.

Lembro-me de o regime censurar jornais, revistas, peças de teatro, filmes, programas de televisão, livros de ficção, de poesia, de história, de geografia, de ciência… Milhares e milhares de livros foram proibidos por serem considerados “inconvenientes”. Mas lembro-me de não saber nada disso. E Lembro-me de não saber que essa “chapa de silêncio” causou danos gigantescos e duradouros aos jovens da minha geração.

Lembro-me de o Livro de Leitura da 3ª Classe ter esta frase: “Todos os portugueses devem respeito e obediência ao Governo da Nação».

Lembro-me de ter tido aulas de Culinária e de Economia doméstica. O que eu não sabia é que essas aulas, ideologicamente, se destinavam a preparar-me para um universo doméstico.

Lembro-me da nossa professora de Ciências tentar, com enorme paciência, explicar-nos a eletricidade, enquanto nós devorávamos um artigo da revista “Flama” cujo título era: “OS Beatles: Gente que faz pensar”.

Lembro-me que durante os anos 60 a mulher casada tinha um estatuto de "eterna menor". Não podia sair do país sem autorização do marido.

Lembro-me de não saber que era legal o marido devassar a correspondência da sua esposa.

Lembro-me do começo da guerra colonial e como partiram para Angola, Moçambique e Guiné os rapazes da minha aldeia.

Lembro-me de existir uma solidariedade desinteressada enquanto norma de conduta e princípio de relacionamento entre os vizinhos.

Lembro-me que em Portugal, nos anos 60, o planeamento familiar era considerado subversivo.

Lembro-me de a pílula ser comercializada em Portugal desde 1962, mas era considerada um método abortivo e, por isso, o seu uso era punível por lei.

Lembro-me de a terra ter tremido. E lembro-me que depois do susto, falou-se dos pijamas dos vizinhos ou da falta deles.

Lembro-me de, no final da década, termos a convicção de que estávamos a viver um período de viragem. Alguma coisa vinha a caminho, mas o que não sabíamos era o que vinha a caminho.

Lembro-me de ler livros proibidos, sem saber que eram proibidos.

Lembro-me de ter lido os “Gaibéus” de Alves Redol. E lembro-me que o narrador acusa os gaibéus de falta de consciência de classe. Aconselha-os a agirem como os estorninhos que se unem para vencer o milhafre. Lembro-me de não ter percebido o que esta alegoria queria dizer.

Lembro-me também de ter lido “Imitação da Felicidade” de Urbano Tavares Rodrigues, uma novela onde há personagens que vivem uma realidade absurda, num mundo fechado e no qual a liberdade é impossível.

Lembro-me que estas leituras, às escondidas, levaram-me a acreditar que as coisas secretas são sempre de maior valor e podem possibilitar um primeiro olhar sobre um mundo.

Lembro-me de, aos 14 e 15 anos, pertencer à Mocidade Portuguesa e de me aperaltar vestida, de verde e castanho, cheia de cintos e emblemas, sem fazer a mínima ideia que estava a participar numa organização juvenil de inspiração nazi.

Enfim, lembro-me que nós fizemos trinta por uma linha… e o pouco que aqui está é uma ínfima parte do muito que vivemos. Não é pecado amar uma década e esta é a minha década preferida. Por trás das músicas que ouvíamos pulsou o entusiasmo, a utopia, o desejo de liberdade e de mudança. Foi em nome dessa liberdade que, na década de 60, na sua fascinante diversidade e pluralidade, os jovens da minha geração fizeram história.

Leonor Santos

 


2 comentários:

  1. Lindo de mais. Era a realidade daqueles tempos que também os vivi, e que as gentes de agora nem imaginam e nem dão valor ao conquistado.

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  2. Uma cronologia de boas lembranças, rebeldia e inocência, mescladas de anseios de liberdade. Boas e sas recordacoes.

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