domingo, 29 de abril de 2018

Obstáculos na vida dum estudante da charneca

Também com algum sucesso

Os obstáculos na vida dum estudante do ensino primário em Torre e Cercas. Não se trata dos valados que encontrava pelo caminho e que tinha de saltar para ultrapassá-los, nem dos cães que lhe saíam pela frente, obrigando-o a fazer mais um desvio, nem tão pouco da chuva dos dias invernosos, de outubro a março, com a roupa encharcada, que enxugava no corpo durante o dia.

Obstáculos a transpor

Os obstáculos foram de outra natureza: decorria o ano letivo de  1956/1957, já quase no fim do ano, a professora Maria Alves adoeceu com uma doença que se prolongou por alguns meses; os alunos que frequentavam a escola primária da Fonte Figueira, foram distribuídos por outras escolas do concelho de Silves.

Morava no extremo nascente da extensa área que é Torre e Cercas, a escola primária de Santo Estévão era a que se situava mais próxima da minha casa,  ficava, no entanto, mais longe do que a Fonte Figueira. Foi para esta escola que fui encaminhado. Cheguei à escola, a professora (não me lembro o nome, talvez porque não tenha tido qualquer importância na minha vida, esqueci por completo), mandou-me sentar na última fila, onde se encontravam os alunos que não tinham sucesso e não me ligou mais: não me mandava fazer trabalhos; não corrigia o que eu mesmo assim ia fazendo; não me passava trabalhos de casa; até que deixei de ligar ao que se passava na aula.

Escola primária de Santo Estévão - foto de 2016

O solo da escola era de soalho de tábuas compridas, com várias rachas, onde se podia ver através desses buracos um espaço em baixo. No meu lugar havia um buraco, pelo qual era fácil descer, bastava levantar as tábuas e aproveitar a distração da professora. O meu passatempo favorito, passou a ser encontrar lápis e borrachas, que caíam pelos buracos. Ao descer ficava com a roupa e todo o corpo num estado miserável, tanto era pó. Estes achados ficaram como alguma coisa que ganhei nesta escola, além das corridas de carrinhos de linhas, no regresso a casa: os carrinhos eram colocados na bifurcação duma cana, previamente feita com um canivete; rolavam na estrada alcatroada até à ponte de Santo Estévão; o desafio era qual o carrinho que ardia primeiro, pela fricção com a cana e o alcatrão. Seguiam-se os banhos no pego do Morgado (alguns amigos disseram-se que era o pego da Torre).

Um dia deixei de ir à escola e passei a ajudar o meu pai na apanha da laranja e noutros trabalhos agrícolas, mesmo contra a vontade da minha mãe (o meu pai estava de acordo, era mais útil a apanhar laranjas e como sabia ler e escrever, fazia os bilhetes que iam no interior dos cabazes, com destino ao mercado abastecedor de Lisboa). Mesmo assim, tenho a convicção, se tivesse sido proposto a exame, passaria sem qualquer dificuldade.

Pomar de laranjeiras

No ano seguinte, no ano letivo de 1957/1958, foi colocada na escola da Fonte Figueira, uma professora de Alcoutim, que ficou hospedada na residência da professora que se encontrava doente. Neste ano  voltei à escola para repetir a 3ª classe, foi a diferença entre continuar os estudos ou ficar pela 2ª classe, com a profissão de agricultor. Esta professora ficou poucos meses, no início de 1958, deu-se o regresso da professora Maria Alves.  Fiz nesse ano o exame da 3ª classe, por ironia do destino, a prova foi feita na escola que não me soube acolher no ano anterior, a escola primária de Santo Estévão. A culpa do fracasso do ano anterior, não terá sido  só da escola, eu também não forcei nada, nem fiquei a saber se resultaria, era muito novo para me preocupar com esses problemas.

Depois destes pedregulhos na minha caminhada, no ano de 1958/1959, continuei na Fonte Figueira para frequentar a 4ª classe. Depois das 3 horas da tarde, continuávamos, eu, o Gregorinho e a Nelita, filha da professora, a resolver provas de exame de admissão, onde eu tive algum papel, em conjunto com os meus colegas, na ajuda que demos à professora na resolução de alguns problemas. Era a primeira vez que a professora ia propor alunos ao exame de admissão na EIC de Silves, era tudo novo para todos nós. Não fizemos o exame da 4ª classe, devido a uma norma que isentava os alunos que eram propostos para o exame de admissão à escola ou ao liceu.

No exame de admissão o que mais me atormentava era a prova de desenho, para o qual não tinha, nem tenho, qualquer jeito. Valeu-me que a prova era sempre igual. Durante o período de preparação para o exame, foram-nos facultadas algumas folhas de desenho, com linhas em esquadria, desenhadas a lápis, que depois de unidos os pontos marcados, eram apagadas (treinámos algumas vezes antes do exame e levámos algumas para a prova). Talvez este esquema tenha sido obtido pelo marido da professora, senhor Manuel Rodrigues (Quinta), sem ter a certeza, que era contínuo na EIC João de Deus. Ainda estou a visualizar a jarra em cima duma estante num canto da sala, para mim não serviu para nada, só tive de unir os pontos, acho que ficou mais ou menos uma jarra, talvez com algum defeito de fabrico, mas o suficiente para não dispensar à oral, nesta oral a jarra não era chamada nem achada, também já não me lembro se havia dispensas.

Na oral, fiz uma prova brilhante, que foi alvo de rasgados elogios por parte do presidente júri. Na visita que fiz à minha professora, no verão de 2016, ela com 96 anos, ainda muito lúcida, recordou-me, porque eu já me tinha esquecido desse pormenor do exame. Fica aqui essa recordação que eu acho exagerada: "tu eras o meu aluno preferido, quando estavas a fazer o exame de admissão e o 'diretor' (acho que não seria o diretor, porque o diretor era o dr. José Correia e não me parece que tenha sido ele o presidente do júri), fez-te muitas perguntas e tu ias respondendo a todas, aí ele perguntou-te: 'o que queres que eu te pergunte mais?' e tu encolheste os ombros e disseste: 'não sei'.". Finalmente houve uma pergunta que não soube responder.

Em outubro de 1959 entrei para o 1º ano do Ciclo Preparatório, na Escola Industrial e Comercial de Silves.

Escola Industrial e Comercial de Silves

F. Santos - Memórias de Infância
20 de abril de 2018 

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