domingo, 15 de novembro de 2020

Lucusse: “Os dias com nuvens cinzentas”

Fevereiro de 1971, um mês para “esquecer ou… para lembrar” …

Lucusse: o comandante a dirigir as obras (faltam-lhe os galões)

Quando relembramos os tempos vividos na guerra colonial, a maioria dos camaradas que regressaram, apenas recordam: o “patriotismo”; o “cumprimento do dever”; a “defesa da bandeira”; os “heróis”; a “disciplina”; as “condecorações” (diplomas e medalhas); os “camaradas abandonados” numa qualquer campa em África; o “esquecimento” das gerações seguintes e dos governantes … Neste testemunho vou sair deste registo e escrever sobre aquilo que a maioria considera ou tem como um tabu, os “castigos”: que terão sido em maior número do que as “condecorações”.

É à volta dos “castigos” que vou desenvolver este tema, começando por perguntar: não terá sido um “castigo” termos sido obrigados a entrar nesta guerra? Não terá sido um “castigo” o nosso batalhão (B.Caç. 2872) ter sido desterrado para o Leste, quando pensávamos que ficaríamos o resto da comissão no Grafanil (embora com as várias operações e escoltas aos MVL para o norte, zona perigosa e propícia a emboscadas)? Não terá sido um “castigo” sermos despejados à porta dum quartel qualquer depois de terminada a comissão? Mas não é sobre estes “castigos” que me irei debruçar.

Da ida para o Leste, já escrevi num testemunho: “A caminhada até Cangumbe, Canage, Lucusse e Lungué-Bungo”. Nessa caminhada, depois de passar por Cangumbe, com todas as peripécias até chegarmos ao Canage, acampamento onde passámos bons tempos, mas também com alguns contratempos, seguiu-se o gozo das únicas férias durante a comissão. Férias passadas em Luanda onde assisti à passagem do ano velho para o ano novo. Quando estávamos no Canage, devido ao avanço dos trabalhos na estrada entre o Luso e Gago Coutinho, onde fazíamos a proteção próxima e afastada à construção e alargamento desta estrada, tivemos de avançar para o Lucusse, abandonando e deixando para trás este acampamento. É no Lucusse, onde se encontrava a sede do Batalhão, com a CCS e outra companhia operacional, a C.Caç. 2504,  durante um período mais ou menos de um mês, que tivemos a nossa base até sairmos para o Lungué-bungo, que se desenrola este testemunho.

Num dia, onde não tinha intenção de sair da tenda, depois de na véspera ter preparado tudo para que assim acontecesse, devido a uma grande dor de dentes com abcesso e cara inchada, não digo que não conseguisse suportar as dores, mas causavam-me grande mau estar. Estava, então, deitado quando chega alguém da minha companhia à tenda e diz-me: “meu furriel, o nosso primeiro disse para ir à secretaria”. De imediato dirigiu-me para a secretaria, quase como me tinha levantado: chinelos; calções e camisa (provavelmente mal abotoada). Cheguei à secretaria e dirigiu-me ao 1º sargento: “Oh Reis, o que se passa?” Ao que ele balbuciou: “cumprimenta o nosso major!”; olhei para trás e estava sentado numa cadeira ao fundo o 2º comandante do batalhão; cumprimentei-o, talvez duma forma não muito regulamentar (na punição vem que: “manteve uma atitude de indiferença e continuando com a mão no bolso” - não posso afirmar que não terá acontecido assim… - O segundo comandante estava ali numa missão de fiscalização administrativa ao armazém de géneros da companhia -. Depois, em diálogo cordial, dirigimo-nos para o armazém. Tinha a ideia e ainda hoje penso assim: era um oficial que não gostava de conflitos, no entanto, teria algum complexo de poder. No armazém facilitei-lhe tudo o que me pediu (ordenou). Conferiu os géneros em armazém (até “pediu” que pesasse alguns), com as fichas de existência. No final ficou agradado com a visita e deu-me os parabéns pela organização. Acompanhei-o à porta e despedimo-nos. Provavelmente esperaria um pedido de desculpas…

Surpresa: ao princípio da noite, sou chamado ao gabinete do comandante. Mal entro, vejo este senhor todo recostado num cadeirão com as pernas em cima duma cadeira e com ar autoritário, atira-me: “então não cumprimentou o nosso 2º comandante como era devido?” Tentei explicar, mas não consegui expressar a minha versão dos factos, porque mal comecei, recebi logo uma ordem: “ponha-se lá fora!”. De seguida dirigiu-me para a enfermaria. Na enfermaria encontrei o meu camarada, furriel enfermeiro, que me adiantou logo: “eh pá, não te posso mandar a uma consulta no Luso porque já saiu na ordem de serviço a tua punição”. Nem sei bem o que terei ido fazer ao gabinete do comandante, porque nem só não me informou da punição, nem me ouviu, como já tinha redigido e publicado a mesma. Fui contemplado com 10 DIAS DE PRISÃO DISCIPLINAR. Talvez este “castigo” tenha sido agravado pelos acontecimentos de 2 semanas antes, quando me recusei a ordenar a venda de cervejas no período de balanço do bar da companhia (referi na altura ao oficial que me deu a ordem que existiam mais 2 bares nesse aquartelamento, um da CCS e outro da C. Caç 2504, onde podiam comprar cerveja fresca, o que não era o caso na nossa companhia). A minha recusa antes do balanço tinha a ver com o cumprimento do que tinha sido decidido pelo comandante de companhia, ausente neste dia, pois não queríamos problemas com défices como já tinha acontecido no Dange, período em que estive afastado, testemunho que já dei conta em: “Vagomestre “promovido” a comandante da Secção de Armas Pesadas!”. Este episódio da venda de cervejas valeu-me 5 DIAS DE DETENÇÃO.

Estas punições relegaram-me para a “4ª classe de comportamento”, o que não fez grande diferença na minha vida pessoal e profissional. De qualquer modo foi sempre um assunto que não digeri muito bem, pois, sempre tive a convicção, que não cometi nenhum “crime”, não “lesei”, nem faltei ao “respeito” a ninguém. Enfim era esta a “pedagogia” usada nesta guerra ou melhor, na minha guerra…

Para terminar, quero dizer que: devido às minhas funções na companhia, não cumpri nenhuma destas penas; por outro lado, uma pena de prisão num graduado implicava a transferência de unidade, o que me teria impedido de seguir para o Lungué-bungo, onde passei um dos melhores tempos da vida militar. Esta transferência, não veio a acontecer devido às diligências do comandante de companhia e do 1º sargento, chefe da secretaria, para que continuasse nesta unidade, porque o meu desempenho como vagomestre era imprescindível para a boa gestão financeira da companhia. O mesmo já tinha acontecido com o próprio 1º sargento, também ele punido com 5 DIAS DE PRISÃO, por ter comandado uma caçada, quando estávamos no Canage, onde tivemos o azar de ter rebentado uma mina com alguns danos materiais e humanos. A este testemunho eu não assisti. Outro camarada da companhia já escreveu sobre este acontecimento, não tendo mencionado o castigo do 1º sargento, em: A MINA NA CAÇADA.

Extrato da caderneta militar

F. Santos – Memórias de Angola

15 de novembro de 2020

Ps: posso estar errado, mas todas estas punições teriam a ver com o mau relacionamento entre o comandante de batalhão e o comandante da minha companhia. Nas confraternizações de graduados, que periodicamente se realizaram, o comandante da minha companhia recusava-se a estar presente quando o comandante do batalhão lá estivesse.

Publiquei em tempos uma sátira baseada num facto real, onde houve um possível desentendimento entre os dois: Cronologia do assalto!

FS

 

5 comentários:

  1. Fomos fardados com um grande fardo.
    A maioria dos “condes” ainda hoje não nos consideram Camaradas e têm pelos Milicianos, genericamente, uma repulsa activa, relegando para segundo plano a evidência, salvo honrosas excepções, de que quem fez a guerra foram os Milicianos e as Praças conscritas.
    Confundiam autoritarismo com autoridade, sinal óbvio de complexo de inferioridade intelectual.

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  2. Estive no Lucusse de Junho 71 a Março 72. Deve ter pertencido ao batalhão que fomos subtituir (fui do BCAV 2902 - Xeque Mate).
    Na minha carreira de oficial miliciano constatei pessoalmente com várias situações dessas que descreve quer na minha unidade quer noutras por onde passei antes de rumar ao Leste depois de 16 meses de intervenção nas condições mais duras que no Leste.

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  3. Estive em Cangamba em 1969,até a janeiro de 1970,era furriel enf. na CCS/Batal.de Caç.2858.O cap. da companhia e o comd. do Batalhão eram o rato e o gato.era só gaita entre eles.

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  4. Estava là quando isso aconteceu, Pertencia à comp.de Eng.2535,

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  5. Caríssimo amigo. Eu também apanhei oito dias de detenção por não comparecer na pista de aviões em Gago Coutinho no 1970. Era primeiro cabo de transmissões e todo o serviço era no posto rádio. Alguém se lembra por-

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