sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

O que ainda não foi dito sobre a guerra do ultramar


Poderá parecer paradoxal falar ou escrever sobre um tema associado à guerra colonial, quando não vivenciámos, de forma direta, os acontecimentos, nem estivemos expostos a experiências tão absurdas e desumanas como as que ouvimos relatar aos verdadeiros sujeitos dessa guerra. Tendo essa circunstância como motivo mais imediato para a nossa reflexão, não deixaremos, no entanto, de aludir a toda uma geração de homens e mulheres que experimentou os efeitos dolorosos desse acontecimento humilhante da nossa história. Mas perguntar-se-á: terá sido a dor menos intensa e injusta para os que a viveram do lado de cá? Sabemos que a guerra do ultramar provocou muito sofrimento e não apenas aos que a viveram do lado de lá do mar. Em termos éticos, políticos e sobretudo humanos, provocou, continua a provocar efeitos diferidos enquanto passado ainda tão presente.

Mas, em todo o caso, o que nos importa neste texto não é abordar os diversos modos humanos de sofrer, cartografando o grau de intensidade da dor. Na verdade, a dor e o sofrimento são experiências profundamente singulares, complexas e íntimas, daí a impossibilidade de se avaliar quanto vale uma dor. Todos sabemos que o acontecimento da guerra, enquanto acontecimento, foi vivido como um mal e como uma ameaça à pessoa humana e ao seu projeto de vida, estigmatizando as linhas de uma experiência de profunda rutura com o presente. Cá e lá ficámos mergulhados num tempo não cronológico, riscado a lápis em calendários inertes que regulavam um quotidiano disfórico e decetivo, pois a ausência tinha levado consigo o futuro. Era como se o fio da história ficasse suspenso pelo tempo da incerteza e pelo medo da perda.

Sim, o medo imaginado e/ou real que era imanente tornava-se todos os dias numa ameaça iminente. Em verdade, vivíamos num receio permanente de receber más notícias. Sabíamos que o lugar do outro estava marcado pela vulnerabilidade, pelo acidente e pela morte.

Somos o único ser que procura dar forma ao medo, para que o possamos superar. O medo remete para uma reação perante uma ameaça concreta, identificável, pelo menos nos seus contornos mais evidentes. Conhecendo as causas que geram o medo, é possível classificá-lo, catalogá-lo e, progressivamente, racionalizá-lo tendo em vista dissipar a estranheza nele contida.

Quando o medo ultrapassa esses limites, isto é, quando se transforma numa ameaça abstrata ou indefinida, escapa às leis da lógica e coloca o homem à beira do abismo, numa situação de absurdidade, atormentando-o impedindo-o de ter uma vivência de bem-estar, transformando-se o medo em angústia e agonia, assumindo uma amplitude maior  e causando um desconforto emocional muito grande. Um mal que leva o sujeito, muitas vezes, a bater no fundo, esgotando-lhe a vida e calando-lhe a voz. Este silêncio tem a violência expressiva de um grito que primeiro foi recalcado e depois, a pouco e pouco, foi sendo esquecido porque recordar provoca dor.

Os traumas da guerra estão ainda por supurar, o que na opinião de Eduardo Lourenço é "um caso de inconsciência coletiva".

A guerra colonial, enquanto acontecimento histórico, levanta ainda grandes interrogações, nunca foi reintegrado num discurso de saber. Na verdade, à boa maneira portuguesa, o caminho foi obliterar e assumir uma atitude de amnésia, lançando um nevoeiro sobre os factos, atribuindo-lhes um certo ar de «normalização», como se não existissem culpados nem culpa.

Todavia, muito já se escreveu  sobre a guerra do ultramar, mas a sua verdadeira história está ainda por fazer. Essa "resistência" coloca-se particularmente ao nível do testemunho, isto é, da deitização do "eu-aqui-agora". De facto, o testemunho faz-se sempre na primeira pessoa, e numa primeira pessoa insubstituível, única, que presenciou e/ou viveu os acontecimentos que constituem o conteúdo do seu depoimento. Daí que a história não seja um mero registo mimético e passivo dos acontecimentos do passado e da imagem dos objetos e das pessoas.

A construção da história deve ser plural e não ter um sentido único. No fundo, aquilo a que parece legítimo renunciar é ao exclusivismo de uma perspetiva que elimine a diferença, lançando na sombra o que se não inscreva nessa linha. Na verdade, não se tem memória de maior solidão do que aquela que é instaurada pela indiferenciação, isto é, quando anulamos a alteridade do Outro, fazendo da nossa imagem o reflexo de nós mesmos.

Nesta conformidade, é necessário fazer a história oral da guerra do ultramar, recuperando os testemunhos pessoais dos verdadeiros protagonistas dessa guerra, através das suas próprias memórias. Não se esquece, no entanto, que o indivíduo ao lembrar o tempo vivido, fá-lo sempre de forma seletiva, esquecendo uns factos, excluindo outros, de forma consciente ou inconsciente.

Sendo embora parcial e subjetiva, a memória oral é indispensável para conferir dignidade histórica e «descontaminar» os registos oficiais que relatam os acontecimentos da guerra, utilizando, para o efeito, uma só face da moeda.

Imagem: O GRITO DE EDVARD MUNCH - 1893
Leonor Santos
sexta-feira, 29 de novembro de 2013

4 comentários:

  1. Porque vivi os acontecimentos durante alguns anos,de 1962 a 1974,fui envolvido no drama da descolonização,do muito relatado e comentado,creiam que foi muito mau para todos.Os episódios vividos foram dramáticos,para uns mais penosos do que para outros como sempre acontece,a história ainda não está bem fundamentada,muito ainda há por acrescentar,gostei da mensagem,razão pela qual dou a minha opinião.

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  2. Parabéns pela analise de Leonor Santos, num olhar lucido real e objetivo, daquilo que foi uma das páginas mais vexatórias da nossa História. Não houve vitoriosos, todos fomos derrotados pelo expansionismo, fruto de má administração, má diplomacia, más estratêrgias na "Arte da Guerra". Hoje choram "Marias e Clarices", sobre um fato de árdua reparação, de grotesca farra de guerrilheiros. Imperava o Mêdo, o Icognito e o desejo ardente que os dias se sucedessem numa infernal velocidade. Abril surgiu e em vez de Paz, se abriram mais trincheiras, sepultando a esperançosa e possivel comunhão de Povos. Mas não foi assim, nunca foi do jeito que imaginamos o alvor do 25 de Abril. Resta que o tempo, tal como os jovens que o ansiavam, retire as sombras do mêdo e apague as pegadas dos soldados e os sulcos das "Berliet", dos tanques e possa incutir a Amizade entre Povos que se querem bem, mas se receiam. Resta que a Língua Portuguesa e a Boa Vontade dos homens, faça nascer a Fraternidade.

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  3. Em tempos escrevi algo sobre a minha vida de 1969 a 1975, dois anos e meio dos quais em Angola. Talvez lá haja algum "material" que permita avaliar, sem influências políticas, o que representou para quem a viveu, a guerra colonial. O Livro chama-se "Amor e Guerra: de Coimbra a Nambuangongo. Os interessados no estudo do tema, podem dar uma vista de olhos. Por certo que encontrarão relatos interessantes. VIVIDOS e SENTIDOS.

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